Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Quarentena

"Quarentena" tem jeito, cheiro e gosto de comida requentada com vírus da raiva superdesenvolvido dentro. Fãs de "[REC]" devem passar longe e aqueles que não viram o original irão achar apenas um longa medíocre.

Em um pequeno exercício de imaginação, vamos aqui tentar conceber como esse "Quarentena" surgiu. Algum funcionário de baixo escalão na Screen Gems deve ter assistido ao ótimo "[REC]" e ter comentado com um colega de trabalho sobre o filme, quando um chefão do estúdio deve ter ouvido os empregados conversando sobre o filme de terror feito em plano subjetivo, ficando intrigado e achando ter encontrado uma pérola do cinema independente buscando distribuição.

No entanto, o engravatado executivo começou a chorar quando descobriu que trata-se de um filme mexicano (o longa, na verdade, veio da Espanha, mas para os americanos, falou espanhol, é mexicano). Daí, ele teve a brilhante idéia de produzir um remake do filme, contratando um diretor de segunda e mandando-o refazer aquele exato filme quadro a quadro, e lançar às pressas no cinema, antes que a fita original estreasse por lá, justamente para o público-médio pensar tratar-se de uma fita Made in USA (afinal, quem liga para os créditos no final no filme, não?).

Só isso para explicar esse inimaginável "Quarentena". Não tenho problema nenhum com refilmagens, desde que sejam feitas de um modo decente e honesto. Ora, cada diretor trata um roteiro de um modo diferente, dando sua visão pessoal àquele texto. "O Chamado" não é igual a "Ringu", "Os Infiltrados" não é uma cópia de "Conflitos Internos" e por aí vai. Até mesmo "O Dia Em Que a Terra Parou" e "Guerra dos Mundos", para o bem ou para o mal, buscaram se diferenciar dos clássicos longas homônimos nos quais se baseiam.

Esse não é o caso de "Quarentena", que optou por copiar (sim, esse é o termo) o filme original. Ou seja, o diretor e co-roteirista dessa versão ctrl+c/ctrl+v de "[REC]", o desconhecido John Erick Dowdle, não teve sequer a originalidade de criar um plano novo ou uma seqüência mais imaginativa. Até mesmo o nome da protagonista, Angela Vidal, manteve-se igual, mesmo que a atriz que a vive, Jennifer Carpenter, não tenha nada de latina e não saiba nem pronunciar "Vidal" direito!

A história do filme é bastante simples. A bela e animada repórter Angela e seu câmera-man Scott estão filmando um programa intitulado "Turno da Noite" para uma emissora local. Mostrando os bastidores de um quartel do Corpo de Bombeiros de Los Angeles, a reportagem caminhava para uma edição chata, já que a noite estava tranqüila, com nenhuma ocorrência sendo esperada para as próximas horas. No entanto, um chamado de resgate em um prédio trará mais emoção do que aqueles personagens podem estar prontos a enfrentar, quando uma misteriosa infecção passa a atormentar os moradores daquele lugar, obrigando as autoridades locais a selar o prédio, com os residentes, dois policiais e dois bombeiros presos e sujeitos a uma ameaça mortal.

Aliás, para quem já leu a minha crítica de "[REC]", sim, eu praticamente copiei a sinopse daquele texto, pois é tudo absolutamente igual. Aliás, minto. Dowdle conseguiu inserir alguns elementos que não estão no original, que seriam… clichês! Sim, temos a vítima chata e reclamona que vai morrer logo, um cachorrinho bonitinho que terá um destino infeliz e a tensão sexual entre a protagonista feminina e um viril membro do Corpo de Bombeiros. Além de copiar de maneira desavergonhada uma obra original, "Quarentena" ainda acrescenta elementos comuns que quebram mais ainda o caráter único da fita espanhola.

Além disso, pontos-chave de "[REC]" estão ausentes no remake ou foram minorados de maneira estapafúrdia. A xenofobia, tão marcante no original na figura dos imigrantes asiáticos, praticamente sumiu, sendo apenas citada em determinado momento e sem grandes repercussões. Até mesmo o interessante personagem homossexual do longa-base perdeu boa parte de seu apelo.

Pare de ler este parágrafo se não quiser saber detalhes importantes para a trama. Já a infecção, agora uma variante do vírus da raiva, teve sua origem minuciosamente explicada e agora não mais está atrelada à Igreja Católica, mas sim a uma seita apocalíptica (?!). A aparição da criatura no final do filme ficou completamente sem sentido, justamente por falta de algumas informações vindas desta suavização do elemento religioso.

Um momento que prova a falta de originalidade absurda da fita é o modo como um dos bombeiros se fere. Enquanto no filme espanhol, a cena foi feita de surpresa, sem que a maioria dos atores soubessem dela, reagindo com um espanto real, em "Quarentena" a seqüência ocorre do mesmíssimo modo, mas sem o elemento-surpresa, com a reação dos atores americanos sendo extremamente artificial em comparação com a das suas contrapartes européias.

As atuações, aliás, são quase nulas. À exceção da já citada Jennifer Carpenter que até se esforça e faz um bom trabalho, especialmente na parte final do filme (na qual segura o longa praticamente sozinha), o público não consegue se conectar emocionalmente com aquelas personagens, até pela atmosfera de artificialidade excessiva da produção, agravada pela fraca direção de atores por parte do inexperiente John Erick Dowdle.

Um exemplo disso é o caso do desespero do policial enclausurado que, na fita original, torna compreensíveis suas reações exarcebadas. No remake, o ator Columbus Short não consegue transmitir a mesma carga emocional, com as suas falas e reações passando longe do impacto causado por suas equivalentes no longa-base, algo que gera até certa antipatia pela personagem, ao invés de compreensão. E isso se repete a grande maioria das figuras que vemos em cena, que empalidecem perante suas versões espanholas.

Para quem não assistiu à "[REC]" essa refilmagem poderia até ser uma boa pedida, já que aquele longa já está fora de cartaz e ainda não chegou em DVD, e este possui alguns bons sustos, mesmo sendo copiados. No entanto, até mesmo o marketing de "Quarentena" conspira para estragar o filme, basicamente revelando sua cena final e o desfecho da fita no trailer e, em menor escala, no pôster. Quando até mesmo isso marca pontos negativos para o filme, é um péssimo sinal.

Honestamente, considero esse "filme" como um atentado à sétima arte, já que mesmo a pior das porcarias feitas em celulóide (até as fitas da Xuxa) ainda mantém um resquício de originalidade, algo totalmente ausente nessa produção. Aconselho esperar "[REC]" chegar em home vídeo e assisti-lo em casa com as luzes apagadas. Será uma experiência muito mais interessante e honesta.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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