Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 13 de setembro de 2008

Ensaio Sobre a Cegueira

Não foi à toa que José Saramago se emocionou com esta brilhante adaptação de seu romance homônimo "Ensaio Sobre a Cegueira". Com este filme, Fernando Meirelles se consolida entre os mais talentosos diretores de sua geração e como o melhor cineasta brasileiro em atividade.

Assim como meu colega Mauricio Saldanha, interrompi minha leitura da versão literária de "Ensaio Sobre a Cegueira" para evitar comparações entre o original literário de José Saramago e esta adaptação fílmica comandada por Fernando Meirelles e roteirizada por Don McKellar. Portanto, este texto é escrito do ponto de vista de alguém que não leu o livro e analisa o filme puramente como uma entidade completamente independente. Feita tal ressalva, vamos em frente.

Poucas vezes fiquei tão tenso assistindo a um longa como em "Ensaio Sobre a Cegueira". Acho que nunca senti um clima apocalíptico tão real em um filme, nem nunca senti o fim fictício da civilização de uma maneira tão palpável. E isso se deve ao clima de degradação dos personagens imposto por Fernando Meirelles em um dos mais louváveis trabalhos de direção que este ano de 2008 viu. Assim como o texto de Saramago, não sabemos o nome daqueles personagens, muito menos sabemos onde a história se passa. De cara, somos apresentados a um homem japonês (Yusuke Iseya), que se encontra em mais um dia comum de sua vida, sentado em seu carro, esperando que o sinal abra.

De repente, ele se vê mergulhado em uma cegueira branca. O pobre homem é "ajudado" por um indivíduo (Don McKellar) que o leva para casa e pega o carro daquele "emprestado". A esposa do japonês (Yoshino Kimura) prontamente o leva a um oftalmologista. Na sala de espera do consultório, vemos outros personagens que se tornarão parte importante da trama, como a prostituta de luxo (Alice Braga), o menino (Mitchell Nye) e o velho de tapa-olho (Danny Glover). O médico (Mark Ruffalo) nada encontra de errado nos olhos do homem e, ao chegar em casa, comenta o estranho caso com sua esposa (Julianne Moore).

Com o passar das horas, a cegueira começa a se espalhar por toda a cidade, inclusive pelo médico. A única que não é infectada pela estranha doença é a esposa deste. O governo, na figura da Ministra da Saúde (Sandra Oh), age com extremo despreparo, isolando os doentes em uma espécie de sanatório, privando-os de qualquer contato com o mundo exterior. A esposa do médico finge-se de cega para acompanhar o marido e acaba por testemunhar os horrores e a degradação crescentes que tomam conta do local de isolamento dos doentes, piorados com as chegadas constantes de novos internos, principalmente com a vinda do ambicioso e oportunista Rei da Ala Três (Gael García Bernal).

É estranho o quanto o filme se comunica com a mensagem pregada pelo Coringa de "Batman – O Cavaleiro das Trevas". A modificação do estado confortável das pessoas civilizadas, introduzindo caos ao status quo destas, leva a uma sociedade monstruosa, onde o ser humano sucumbe à máxima hobbesiana do "Homo homini lupus" ("o homem como lobo do homem").

No filme, a maior dificuldade enfrentada por aquelas pessoas não é a cegueira per si, mas o abandono dos seus próprios valores morais e o esquecimento deles por parte do Estado oficial que, conforme cresce o número de pessoas infectadas (ou indesejáveis), fica cada vez mais perto de sua própria destruição. Neste sentido, a temática do longa dialoga com a do longa mais conhecido da carreira de Meirelles, "Cidade de Deus", com a criação de um poder paralelo ao oficial.

O elenco está homogeneamente afiado. Julianne Moore está particularmente arrebatadora como a protagonista do longa. A única a enxergar em um mundo de cegos, sua personagem não se vê como uma privilegiada, mas como uma prisioneira, sendo a única a ver quão baixo a civilização pode chegar, mas, ao mesmo tempo, se recusando a se entregar a loucura. A atriz expressa tal conflito de maneira excepcional, através de pequenos gestos e inflexões. Não me espantaria uma indicação de melhor atriz para ela.

Já Mark Ruffalo, com sua expressão sempre cansada, foi uma escolha perfeita para o papel do médico. Acostumado a resolver problemas e ser independente, sua frustração a ter de contar com sua esposa para tudo é gritante – e desesperadora. Sua progressiva entrega à apatia só é cortada por um ato drástico de sua esposa e tal estado é muito bem retratado pelo ator.

Em papéis menores, temos Alice Braga vivendo seu segundo apocalipse – bem como sua segunda prostituta -, tendo um desempenho sólido como sua personagem, que possui uma marca visual (seus óculos) bastante peculiar. Gael García Bernal encarna a ganância humana como seu Rei da Ala Três, encarnando o segundo personagem mais calhorda e carismático a ser visto nos cinemas este ano, perdendo apenas para o já citado Coringa de Heath Ledger, visto em "O Cavaleiro das Trevas". Mais interessante ainda: é justamente uma cena deste personagem odioso a responsável por gerar o momento de maior descontração para o público, em uma referência ao músico cego Steve Wonder.

Destaco ainda o veterano Danny Glover, que há muito não aparece em um papel relevante, vivendo aqui o velho com o tapa-olho, que atua como o alter-ego de José Saramago no filme. Com sua poderosa e respeitosa voz, Glover se encaixa perfeitamente na proposta. Deve-se saudar ainda o trabalho de Don McKellar, que conseguiu transformar em um roteiro cinematográfico bastante fluido a prosa única de José Saramago, autor que muitos consideravam ser infilmável. McKellar ainda aparece em cena como o primeiro homem a tentar tomar proveito da cegueira branca de outro, apenas para se tornar um infectado depois.

O cenário apocalíptico do longa é pintado com maestria pela belíssima fotografia do uruguaio César Charlone que, em determinados momentos, nos aproxima bastante do estado de "cegueira branca" dos personagens. É incrível como Charlone consegue ajudar Meirelles a retratar a crescente degradação daquelas figuras através da iluminação e de filtros de cores diferentes, exibindo a importância de um cinematógrafo para um filme de maneira rara.

Em dado momento, um homem infectado explica que sua cegueira funciona como se alguém tivesse ligado todas as luzes na sua frente. Posteriormente, o filme ilustra que um outro personagem havia ficado cego, com tal insinuação sendo feita através do simples passar de um carro com farol alto. É esse tipo de sinergia entre o cinematógrafo e o diretor que fazem a diferença em grandes filmes.

Outro exemplo disso é a seqüencia na qual a personagem de Julianne Moore – e o público – é cegada para que as atrocidades cometidas pelos homens da Ala Três possam ocorrer, em cenas simplesmente geniais e assustadoras e um exemplo da competência da dupla César Charlone e Fernando Meirelles.

Já o próprio diretor exibe seu talento como nunca. Além de arrancar atuações primorosas de todo o elenco, ele conduz a pesada trama com segurança. Visualmente, Meirelles investe em planos desafiadores, jamais banalizando a sua câmera. Exemplos disso estão em cenas como na chegada dos novatos ao asilo (com resultados trágicos), na lavagem do corpo de uma interna da ala um pelas demais mulheres, na seqüência do incêndio, e nas cenas que retratam o vazio das cidades, que possuem qualidades únicas, quando poderiam parecer simples cópias de "Extermínio".

Na edição, Daniel Rezende realiza, mais uma vez, um ótimo trabalho, dando um bom ritmo às seqüências e realizando algumas transições maravilhosas, se utilizando da fotografia inspirada da própria fita. No entanto, o excesso de densidade presente no segundo ato da narrativa faz com que este pareça demasiadamente longo, mas nada que comprometa o resultado final.

Muitos espectadores mais sensíveis podem ficar desconfortáveis com algumas cenas mais pesadas. É preciso ter em mente que este não é um filme apocalíptico hollywoodiano comum. Por mais acostumados com o apocalipse cinematográfico que nós sejamos (vide o já citado "Extermínio" e o recente "Eu Sou a Lenda"), a adaptação de Fernando Meirelles para "Ensaio Sobre a Cegueira" é, sem sombra de dúvidas, a representação cinematográfica mais contundente, suja e "real" do fim da civilização, em contraste aos demais Nostradamus fílmicos, sempre demasiadamente assépticos.

Este pesado e forte longa não será uma unanimidade dentre cinéfilos e espectadores ocasionais, devendo despertar reações diversas (e opostas) entre suas platéias. Não será difícil encontrar pessoas que odiarão esta fita. No entanto, é de minha opinião que este filme é uma das mais poderosas obras cinematográficas já realizadas. Recomendado.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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