"Batman - O Cavaleiro das Trevas" é uma experiência emocional como não se via há muito em um dito "filme de ação", elevando as adaptações de HQs a um outro nível.
A franquia “Batman” chegou às telas na era contemporânea em 1989, com Tim Burton levando aos cinemas a sua versão do herói e de seu arquiinimigo, o Coringa. Apesar do sucesso que o filme fez e da elogiada interpretação de Jack Nicholson, a verdade é que os fãs do homem-morcego sempre acharam que ficou faltando algo na produção. Um quê indefinível cuja ausência também fora sentida em “Batman – O Retorno” e ampliada nos ridículos “Batman Eternamente” e “Batman & Robin”. Apenas quando o diretor Christopher Nolan trouxe um novo início à saga do cruzado de capa, com o ótimo “Batman Begins”, os fãs começaram a ver desenhado o filme perfeito para o herói.
E eis que este chega. “Batman – O Cavaleiro das Trevas” é uma experiência sem igual para iniciados ou novatos ao universo de Gotham. Isto acontece porque Nolan aplica o impacto da existência do Batman e dos demais personagens que ao redor dele existem em um ambiente ao qual podemos nos relacionar diretamente. O resultado é um filme que mostra não só como o mundo real seria afetado pela figura do homem-morcego e seus aliados, mas de como a realidade agiria nos corações e mentes dele, de seus aliados e vilões.
O longa começa cerca de um ano após os eventos da fita anterior. A aliança entre Batman (Christian Bale) e o tenente Jim Gordon (Gary Oldman) está conseguindo finalmente livrar a cidade do crime organizado, que sofre ainda mais com a chegada do novo promotor público, o galante e incorruptível Harvey Dent (Aaron Eckhart). A ascensão de Dent é vista pelo Batman como uma chance para que ele possa, um dia, ter uma existência normal como Bruce Wayne, com a cidade nas mãos de um herói que não precise de máscara. No entanto, Dent está namorando justamente a amada de Bruce, Rachel Dawes (agora vivida por Maggie Gyllenhaal).
Com o cerco se fechando, os mafiosos resolvem aceitar o plano proposto por um insano e sádico vilão conhecido como Coringa (Heath Ledger) para eliminar de vez aquele que inspirou o medo no coração dos criminosos e a esperança na cidade: o próprio Batman. A partir daí, o Coringa passa a cometer atos absolutamente aleatórios de violência, aparentemente tendo a morte do herói como objetivo, mas com um plano muito mais sinistro em movimento.
A grande virtude do filme é não tratar sua trama como apenas mais um filme de super-heróis. Longe disso. “Batman – O Cavaleiro das Trevas” é um drama policial de primeira linha, podendo ser comparado, sem medo, a filmes como “Serpico”, “Los Angeles Cidade Proibida” e “Fogo Contra Fogo”. No entanto, a produção jamais esquece as origens de sua trama, com diversas referências a clássicas histórias em quadrinhos estreladas pelo personagem. De imediato, os fãs reconhecerão cenas tiradas de “Batman – Ano Um”, “Asilo Arkham” e, principalmente, “A Piada Mortal”, de onde a motivação do Coringa é captada.
Todos os personagens da fita possuem um próprio arco narrativo fechado, cortesia do maravilhoso roteiro escrito pelo diretor e seu irmão, Jonathan Nolan. A concepção de tramas convergentes (não paralelas) a cada uma das interessantes figuras em cena enriquece a experiência, mesmo com Batman/Bruce Wayne, Harvey Dent e o Coringa sendo as forças-motrizes que movem a história principal.
Aliás, o citado trio de personagens gera o principal conflito do filme. Batman e o Coringa são forças diametralmente opostas. Enquanto o homem-morcego surge buscando inspirar as pessoas, trazer a esperança de volta a Gotham – embora nem todos os cidadãos da cidade entendam a mensagem -, Harvey Dent é um fruto direto das ações do herói, a representação do tudo o que Wayne gostaria de ver sendo realizado. Considerado como “O Cavaleiro Branco”, Dent é um promotor dedicado à justiça e sem ter o rosto escondido por uma máscara, mas que possui uma raiva escondida dentro de si.
No entanto, o Coringa, como contraponto do homem-morcego, busca inspirar o pior das pessoas. Segundo ele, a loucura é como a gravidade e atrai todo e qualquer ser humano, só precisando de um pequeno empurrão. Buscando perverter tudo aquilo pelo que Batman trabalhou, o Coringa se vê compelido a destruir o espírito de Gotham e testar os limites da sanidade dos maiores aliados do cavaleiro das trevas. Os limites dos habitantes de Gotham são levados sempre a extremos, graças às maquinações do vilão.
Quanto aos companheiros de luta do herói, cada um tem sua função de ser. O fiel Alfred (Michael Caine) age como a figura paterna de Wayne, sempre protegendo o seu patrão, seja tratando de seus ferimentos ou cuidando de machucados mais emocionais. Gary Oldman cria a versão mais complexa de Jim Gordon já mostrada em qualquer mídia. Apresentado como um policial competente e um homem de família que quer acreditar no bem, Gordon é uma pessoa que se prontifica para se arriscar pelo que acredita. A amizade de Gordon e Batman age como uma âncora para as esperanças de ambos os personagens.
Cabe aqui um parêntese sobre uma cena entre Gordon e seu filho, na qual o pai revela ao garoto que havia salvado Batman, ídolo do pequeno, em uma situação de perigo, o que deixa o policial com certo orgulho. Apesar de seu tom soturno, inapropriado para qualquer um abaixo dos catorze anos – ou até mesmo por conta deste fato – o filme não esquece a fascinação que a figura dos heróis mascarados exerce sobre as crianças, representadas na película pelo filho de Jim Gordon. Tal fato ganha um peso ainda maior nos últimos momentos da projeção, onde ocorre um diálogo mais sério sobre a natureza do Cavaleiro das Trevas na qual o garoto representa a própria audiência.
Rachel Dawes é o elo emocional entre Batman e Dent e, com certeza, a personagem foi beneficiada pela saída de Katie Holmes da franquia, com o papel assumido pela discreta e talentosa Maggie Gyllenhaal. Morgan Freeman concebe seu Lucius Fox não somente como o “Q” da série, mas como os olhos da moralidade de Bruce Wayne, guiando o personagem quando este se vê tentado a abraçar um autoritarismo que seria o inverso do que ele realmente almeja. Em papéis menores, Cillian Murphy volta para fechar o arco do Espantalho, deixado em aberto em “Batman Begins”. Já Eric Roberts representa o mafioso tradicional, que acaba por se vê substituído por “um tipo melhor de criminoso”.
No entanto, Christian Bale, Aaron Eckhart e, principalmente, Heath Ledger são a medula espinhal das atuações. Bale cria um Bruce Wayne complexo, que sonha com o dia em que Gotham não mais precisará de um Batman. A aparente impossibilidade de tal anseio se liga diretamente à de Michael Corleone na saga “O Poderoso Chefão”, assim como a tentação dos dois personagens em sucumbir à paranóia e descer ao nível de seus rivais. Além disso, Bale cria o mais vulnerável dos heróis, que exibe claramente em cena suas cicatrizes emocionais e físicas, embora demore a reconhecer seus próprios limites. Apesar de humano e falho, Wayne não vacila em tomar para si qualquer fardo em nome do bem maior.
Por sua vez, o Harvey Dent de Aaron Eckhart é o personagem mais sofrido da produção. Preso no verdadeiro “cabo de guerra” entre a ordem e o caos (representados pelo Batman e o Coringa), Harvey é uma figura humana, que conquistou mais do que qualquer outra em Gotham sendo apenas ele mesmo, e isso o coloca em um lugar onde tem muito a perder.
O Coringa é atraído por isso. Heath Ledger criou uma figura anárquica, cujo único anseio é o mais completo caos. Sua interpretação, trejeitos, maneirismos, tudo se encontra dosado perfeitamente para criar uma figura assustadora e carismática, jamais caricata. Assim como nos quadrinhos, não sabemos de onde ele surgiu – nem o próprio vilão parece saber exatamente sua origem. Sua existência parece ser uma resposta direta à do Batman, com um equilibrando as ações do outro. Ledger cria um vilão soberbo e sua performance é digna de ser lembrada como uma das mais marcantes e impressionantes da história recente do cinema, o que só aumenta o pesar do falecimento tão repentino do ator.
Não é a toa que, em determinada cena, o diretor Christopher Nolan coloque a câmera de ponta-cabeça para que possamos enxergar como o vilão enxerga o mundo. Aliás, Nolan cria planos absolutamente fenomenais, sempre voltados para a construção da história. O diretor ainda merece ser louvado por investir sempre em efeitos visuais mais “artesanais”, com a computação gráfica praticamente inexistindo em comparação a filmes como “Homem de Ferro”. O resultado é que, a despeito de ser uma produção muito bem trabalhada visualmente, seu look jamais cria um ruído na própria fita, integrando de forma brilhante a forma e o conteúdo.
A direção de fotografia de Wally Pfister, velho colaborador de Nolan, é perfeita, alterando entre cores quentes e mais frias a depender da intensidade emocional da cena. Além disso, Pfister mostra-se um mestre na iluminação, sempre apresentando o rosto de Harvey Dent dividido entre luz e sombra, preconizando sua tragédia. O filme é editado magistralmente por Lee Smith, outro veterano de “Batman Begins”, que transforma as quase três horas de filme em uma experiência de tirar o fôlego.
Por falar em retornos à série, mais dois profissionais que trabalharam no filme anterior merecem destaque por sua participação neste novo longa. A dupla James Newton Howard e Hans Zimmer mostra uma trilha simplesmente fantástica para a produção, evoluindo os temas feitos para o Batman na fita anterior. Além disso, eles criam outros temas para os novos personagens, com aqueles voltados para o Coringa remetendo diretamente às faixas compostas por Jonny Greenwood em “Sangue Negro”, principalmente no que tocante à utilização de guitarras nas composições que representam o Coringa.
Tenso e emocionalmente pesado, “Batman – O Cavaleiro das Trevas” não é só um mero filme, mas uma experiência cinematográfica única. Uma obra-prima absolutamente recomendada.