Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 18 de abril de 2008

Lawrence da Arábia

“Lawrence da Arábia” é um marco do cinema, tendo estabelecido as bases para os filmes de deserto. É uma cinebiografia que explora vários aspectos do lendário Lawrence, que permanece atual até hoje, tendo em vista a questão árabe.

“Lawrence da Arábia” é uma cinebiografia de Thomas Eduard Lawrence, militar britânico que liderou os árabes na luta pela libertação contra o império Otomano (Turco) durante a I Guerra Mundial (1914-1918). As cenas no deserto e a multiplicidade temática, que explora vários aspectos do enigmático Lawrence, fizeram do filme um marco. A cinematografia do filme influenciou obras como “O Paciente Inglês” e a série "Indiana Jones".

Durante a I Guerra Mundial, o tenente T. E. Lawrence (Peter O'Toole) é enviado como observador para a região do Império Turco dominada por tropas britânicas. Lá, o exército inglês trabalha para convencer o príncipe árabe Feisal (Alec Guinness) a abandonar o deserto e rumar para o litoral, onde os árabes seriam treinados e armados. O príncipe resiste à idéia. Contrariando a orientação oficial, Lawrence começa a trabalhar para que os árabes fiquem. Para mostrar que é possível a vitória, lidera 50 beduínos em uma missão de risco através do deserto para tomar o controle de Aqaba, cidade estratégica dominada pelos turcos.

A missão é bem-sucedida. Ao retornar para a Inglaterra, Lawrence é promovido a coronel e consegue autorização do comando para liderar os árabes na luta contra os turcos. Como aconteceu na vida real, Lawrence tem espetaculares vitórias. À medida que convive com os árabes, começa a respeitar sua cultura. Passa a trabalhar junto ao governo britânico para que os árabes formem uma nação independente após a derrota dos turcos. Recebe a garantia de que as regiões árabes não entrarão na partilha territorial entre as potências vitoriosas. Com ânimo redobrado, incorpora o papel de libertador do povo árabe, transformando-se ainda em vida no mito que de fato foi. No entanto, o soldado desconhece os meandros da política. Enquanto luta pela independência árabe, o governo britânico trabalha para a vitória dos interesses das grandes potências.

“Lawrence da Arábia” traz cenas grandiosas do deserto. Os planos abertos e demorados utilizam a profundidade de campo para mostrar a contradição entre os ambientes urbanos (cuidadosamente preenchidos com objetos, móveis, papéis) e o deserto, onde só há sol, areia e vento. As cenas do deserto à noite e de dia e das tempestades de areia estabeleceram a cinematografia de filmes do gênero. O único porém é o excesso de limpeza, de fotografia clean que dá ao deserto um tom bucólico que não combina com o que ele representa no filme: um obstáculo a ser superado.

O deserto vasto e uniforme jamais é monótono na direção de David Lean. Ele é povoado por beduínos, guerreiros do deserto retratados de maneira que serviu de parâmetro no cinema a partir de então (transformando-se até em estereótipo). Mais que o deserto, eram os beduínos que Lawrence admirava, fascinado com sua adaptação a um ambiente inóspito. O filme mostra os costumes e tradições dos árabes à medida que um ocidental vai interagindo com elas (como ocorre com o branco de “Dança com Lobos” em relação à cultura indígena).

Ao contrário das cinebiografias minimalistas de hoje, “Lawrence da Arábia” explora vários aspectos do personagem. O principal deles é o religioso, que sempre mereceu atenção dos estudiosos do mito. Aqui, Lawrence é retratado como uma metáfora de Cristo. Sempre vestido de branco, pergunta aos árabes: “Quem caminha comigo sobre as águas?”. Defende que há um destino para cada homem, mas ele é construído por cada um (“nada está escrito”) – ou seja, pelo livre-arbítrio cristão.

Ele também incorpora Moisés, liderando o povo escolhido (desta vez os árabes ao invés dos judeus) em uma longa jornada no deserto. As várias referências cristãs no filme terminam por se sobressair ao islamismo dos árabes. Eles passam a acreditar no livre-arbítrio cristão (!), transformando o filme em uma mal disfarçada defesa da religião das potências ocidentais.

Na área política, o filme sinaliza para uma pendência dos árabes com a Inglaterra (de onde saíra seu herói da independência). Diminui a influência da Inglaterra no fracasso da formação de um império árabe, atribuindo-o mais à desunião entre as tribos do que às potências vencedoras, que deram aos árabes menos terras do que haviam prometido. Além disso, Lawrence mais modifica do que assimila os valores árabes (a começar pela religião). O saldo é claramente positivo para os ingleses, que tanto na época do filme quanto na I Guerra tinham interesses nas regiões árabes.

O longa é um clássico de impressionante atualidade. Afinal, a questão árabe permanece até hoje, mas a partir dos anos 60 com um novo ator: os Estados Unidos. Agora são eles que usam o cinema para mostrar o quanto os árabes lhe devem, seja na ficção “pura” ("Rambo III"), seja na ficção baseada em fatos reais (o recente “Jogos do Poder”, com Tom Hanks).

Outro aspecto abordado é o da homossexualidade de Lawrence. As referências são sutis (o ano era 1962, afinal), mas claras ao longo de todo o filme. Ao ser torturado por oficiais turcos (seqüência antológica), o que mais aterroriza o herói é o toque suave do comandante turco, que busca algo para seu prazer sexual. Seu amigo e colega de batalhas, Sherif Ali ibn el Kharish (Omar Sharif), é debochado por outro árabe: “Você o ama”. Sua relação com o serviçal Farraj (Michel Ray) é de excessivo zelo. De resto, toda a interpretação de Peter O´Toole é baseada em gestos e poses afeminadas, com intenção clara.

Finalmente, o filme aborda o lado militar de Lawrence. É um dos poucos momentos em que falha. É difícil acreditar, por exemplo, que Lawrence gastaria água em pleno deserto para fazer a barba, ignorando a reprimenda do amigo Sherif Ali. É igualmente difícil acreditar que um militar conseguiria apoio dos duros homens do deserto comportando-se como um adolescente brincalhão, como faz em alguns momentos (não em todos). O resultado, além de prejudicar o personagem, é um humor deslocado em relação ao tom do filme (pouco importa se Lawrence era realmente assim. O que é verossímil na vida nem sempre o é no cinema.)

Além do personagem, “Lawrence da Arábia” aborda a máquina política por trás das guerras. Lawrence luta pela independência dos árabes, mas o governo britânico trabalha para controlar as regiões árabes após a independência. Lawrence é manipulado a um só tempo pelo governo britânico e pelo líder árabe Faisel. Na máquina de guerra, sua função é unicamente a operação militar. Quando a guerra é ganha, é alijado das negociações. Sua própria fama é construída pela estratégia política. Um jornalista americano, Jackson Bentley (Arthur Kennedy), é mandado ao deserto para construir um herói, de maneira que a opinião pública dos Estados Unidos aceite a entrada do país na guerra (o que aconteceu em 1917).

“Lawrence da Arábia” é uma produção com liberdade artística. Alguns personagens e situações do filme não existiram de verdade, ou são resultados de fusões de personagens e incidentes reais. Nisto, segue a linha do próprio Lawrence, cujo livro de memórias “Os Sete Pilares da Sabedoria”, lançado em 1926, é tido como inexato e exagerado por alguns historiadores. Mitos são construídos além da verdade. Lawrence foi um mito em vida, a ponto de muitas de suas façanhas militares serem questionadas quanto à veracidade. Como personagem de cinema, Lawrence é mostrado como mito e como homem neste filme definitivo.

Douglas Lobo
@faq.php

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