Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 06 de abril de 2008

Maré, Nossa História de Amor

O drama musical “Maré, Nossa História de Amor” mistura temáticas usuais em filmes nacionais, mas tem o diferencial na forma como se comunica internamente entre o elenco, e este com o público. Uma história de amor shakespeareana em uma favela regada a muita música e pedidos por uma sociedade melhor.

Shakespeare até hoje é inspiração de vários romances vistos no cinema mundial. A realidade é que, talvez, tenhamos apenas um estilo de história de amor, sempre se confundido no seu mais íntimo detalhe com o que o grande mestre escrevia. Romeu e Julieta morreram de e por amor. Era uma impossibilidade em ficar juntos que sobressaiu a vontade de viver, ao passo que serviram de exemplo para a crença nesse sentimento que se diz o mais belo da humanidade. “Maré, Nossa História de Amor” é livremente baseada nessa obra de Shakespeare, mas ao invés de falar basicamente de entrega e morte, fala acima de tudo sobre amor. Amor que tem, amor que sobra, amor que falta, amor cruel, amor amado, enfim.

A trama se passa na favela carioca de Maré. Lá, duas facções de traficantes dividem a área. Os vermelhos são liderados por um homem que, mesmo preso, ainda exerce influência na área; enquanto os azuis são liderados por Dudu (Babu Santana). A sonhadora Analídia (Cristina Lago) é protegida pelos vermelhos, enquanto Jonata (Vinícius D’Black) é irmão de Dudu. Os dois jovens se apaixonam em um baile de funk e passam a viver um amor que só existe escondido ou durante as aulas de uma escola de dança que marca a neutralidade entre os grupos rivais. Nesta escola, coordenada por Fernanda (Marisa Orth), jovens de toda a favela se reúnem para dançar e criar expectativas em uma vida melhor.

Sem mudar o ambiente e abordagens que muitos filmes nacionais têm feito nos últimos anos (dentre eles “Cidade de Deus”, “Carandiru”, “Cidade Baixa” e até o próprio “Tropa de Elite”), “Maré, Nossa História de Amor” inicialmente parece que beberá inteiramente da mesma fonte. Por mais que muita coisa se confunda com as produções acima citadas, a primeira característica a ser observada é a idéia em montar um musical dentro de uma favela. Supostamente um local de violência generalizada, porém com pessoas boas, a diretora e roteirista Lúcia Murat traz vida aquilo que costuma aparecer apenas em preto e branco. As músicas brasileiras contemporâneas que protestam por uma sociedade melhor ganham as vozes fortes do elenco, em maior parte desconhecido, porém revelador de grandes talentos.

A história traz muitos elementos que se encaixam. No roteiro, nada é por acaso, e a leitura feita pelo elenco causa a sensação de uma realidade mais próxima. Os jovens que roubam as cenas principais parecem mais que personagens, ao passo que aquela violência tão cansada do cinema nacional de tiros e sangue ganha um teor caricato e com irrelevância. Afinal, o filme é sobre amor, sobre acreditar em algo. Analídia e Jonata são apenas os catalisadores de uma mensagem universal dada por todos os personagens do longa. Ao mesmo tempo em que citam “Romeu e Julieta”, eles são Romeu e Julieta, que têm suas vidas roubadas.

Lúca Murat conduz os atores com perfeição. Além da disposição de ótimas coreografias que, junto ao funk e hip hop, trazem um a brasileiridade gostosa de se ver em cena, a diretora mede com cautela cada sensação que o filme proporciona. Quando precisa ser sutil, utiliza-se de uma câmera inteligente para isso (destaque para a cena de sexo entre os protagonistas), e quando precisa chocar, causa arrepios (como na cena dos tiros de Dudu no final do filme). Aliás, se não fosse a edição descuidada da película, que acentua os erros de continuidade e posicionamento dos personagens principalmente nos números musicais, o filme seria esteticamente perfeito.

Os protagonistas Cristina Lago e Vinícius D’Black têm uma química incrível em cena, ajudando na composição de tomadas inesquecíveis. Sejam em momentos sós ou como casal, a dupla impressiona também pelo vigor físico e pela disposição das coreografias. Cristina Lago tem tudo para crescer como atriz, seja no cinema ou na televisão, já que possui uma linguagem corporal extremamente eficaz. D’Black tem uma voz potente e agradável de ser ouvida. Marisa Orth está competente como sempre, afastando-se das comédias e investindo em uma personagem com mais profundidade, além de também cantar.

Vale a pena destacar que, como musical, o filme decepciona justamente no encaixe da trilha sonora cantada junto às imagens. As gravações em áudio não entram em harmonia com os atores em ação, parecendo totalmente deslocadas ou "ocas" ao que está sendo mostrado. Este é um dos pontos gravíssimos do longa, que perde o encanto e dá a sensação de que alguns números não foram bem realizados pela mistura de áudio e imagem mal estabelecida. Para compensar o terror melódico, as coreografias surgem como espetáculo captado pela câmera da diretora em canções de protesto conhecidas por nós.

Não posso deixar de citar a cena do baile funk, quando as duas gangues se encontram e simulam a briga com números de dança. Muito me remeteu a disputa entre os Jets e os Sharks de “Amor, Sublime Amor”, musical hollywoodiano de 1961 que marcou a história do cinema com suas canções fortes e coreografias ousadas. Os dez Oscar vencidos pela obra de Robert Wise e Jerome Robbins se deram também pela abordagem de uma história shakespeareana, com o amor impossível entre dois membros de grupos diferentes, que resulta em tragédia.

Com a licença dos spoilers, em “Maré, Nossa História de Amor”, o final destinado de Romeu e Julieta é tão doloroso quanto no original, porém tira aquilo que tinha fantástico em Shakespeare para escurecer a verdade amarga da sociedade brasileira. O longa é um grito cantado de protesto para que sejam salvos os sentimentos e que as pessoas não vivam apenas repletas de medo e sem esperanças se sobreviverão do lado de fora. Um belo filme que merece ser apreciado com bons olhos.

Diego Benevides
@DiegoBenevides

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