Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 28 de março de 2008

Nascimento de Uma Nação, O

Moralmente repugnante e tecnicamente irretocável, "O Nascimento de Uma Nação" merece seu lugar como uma das obras-chaves do cinema, mesmo com sua temática racista e vil.

Enquanto obra cinematográfica, “O Nascimento de uma Nação” (“The Birth of a Nation”, 1915), é uma das produções mais ambiciosas que o cinema já viu. A fita, dirigida por um dos desbravadores da então infante sétima arte, D.W. Griffith (1875 – 1948), inaugurou vários aspectos de filmagem e de edição que ainda são usados por cineastas em suas produções. No entanto, se como diretor o trabalho de Griffith na produção é louvado até hoje, 93 anos depois do lançamento da película nas salas de projeção norte-americanas, sua atuação como roteirista nesta adaptação do livro “The Clansman” é considerado infame, por conta do conteúdo notoriamente racista do filme.

Baseado no romance de Thomas F. Dixon Jr. (1864 – 1946), o filme fora escrito por Griffith em parceria com Frank E. Woods (1860 – 1939). O longa conta a grandiosa saga das famílias Cameron e Stoneman durante o período da Guerra Civil dos EUA e o conseqüente período de restauração do país após o conflito. Enquanto os Cameron eram um poderoso clã agrário do sul americano, o poder dos Stoneman, mais precisamente do pai, Austin Stoneman (Ralph Lewis), vinha da política. A despeito das diferenças ideológicas, os jovens das famílias cultivavam uma grande amizade. Quando o conflito entre o norte da União e o sul escravocrata dos Confederados explode, grandes perdas ocorrem em ambos os núcleos. No entanto, é no período de reestruturação que jazem os grandes conflitos – e defeitos ideológicos – da produção.

O grande protagonista do longa, o “pequeno coronel” Ben Cameron (Henry B. Walthall), se apaixona por Elsie Stoneman (Lillian Gish), o nada obscuro objeto de desejo do grande vilão da fita, o “mulato” Silas Lynch (George Siegmann), afilhado político de Austin Stoneman e líder dos candidatos políticos deste na campanha política no sul da nação. Enquanto Cameron – e o próprio filme – advoga pela escravidão dos negros, Lynch é mostrado como um megalomaníaco que se utilizará dos ingênuos e bárbaros afro-americanos como seu curral eleitoral e exército particular para seus fins pessoais. Para defender os brancos e a supremacia ariana (sim, a palavra favorita dos nazistas é usada pela fita), Cameron cria a famigerada organização Ku Klux Klan, entrando em confronto direto com Lynch pelo domínio do sul e pelo coração de Elsie.

O romance do casal principal nada mais é que o modo dos realizadores da película nos fazerem para torcer pela derrocada de Lynch. Utilizando-se da visão romântica de Ben e Elsie, além da “demonização” do antagonista, a audiência é levada pelos ideais pervertidos que o filme prega, colocando a segregação racial e a submissão dos negros como ideal de vida. Dentro do universo ficcional mostrado pela película, os bons negros são aqueles que aceitam passivamente seu papel natural de escravos, defendendo seus mestres contra tudo e contra todos, enquanto aqueles que desejassem a igualdade racial seriam mandados (literalmente) para o inferno. Até mesmo os aliados dos negros, como Austin Stoneman, são retratados com características risíveis e deturpadas.

O desejo do roteiro em nos ver querer repudiar qualquer idéia de igualdade é tamanho que o grande estopim para os maiores conflitos da película é um incidente que, apesar de ter a participação de um negro em seu desenvolvimento, este não contribuiu ativamente para seu trágico resultado. Ele começa, então, a ser perseguido pelos supremacistas arianos, logo sendo punido barbaramente pela Klan. O próprio visual dos personagens não-caucasianos mostrados são absurdamente caricatos, chegando ao cúmulo de vários dos negros vistos em cena serem, na verdade, atores brancos maquiados.

Já tocando na questão técnica – tópico que garantiu a perpetuidade desta obra –, Griffith usa com maestria de todos os parcos recursos que possuía a época. Se utilizando de planos magníficos, lembrados até hoje em obras modernas, o cineasta mostra todo o seu gênio nesta ambiciosa película. Diversas batalhas, todas em grande escala, são travadas no decorrer da projeção, sendo mostradas em planos abertos com um espantoso preciosismo em sua realização. O diretor prende o espectador na trama, seja nos momentos mais intimistas ou graficamente mais ambiciosos, graças a sua competência ao conduzir a narrativa visual da película.

A cinematografia da produção ficou por conta de G.W. Bitzer, que tem seu destaque nas diversas cenas externas da produção, além de ter ajudado Griffith na criação de seus criativos usos da câmera. A direção de arte da fita também deve ser louvada, nos mostrando os EUA no fim do século XIX de maneira soberba, além dos ótimos figurinos com os quais a produção conta. A montagem nos mostra acontecimentos que ocorrem em diferentes lugares ao mesmo tempo (cross-cutting), recurso levado às últimas conseqüências durante o clímax da produção, com duas batalhas ocorrendo em paralelo.

No entanto, os planos excessivamente longos irão certamente desagradar os adeptos do cinema atual e de sua montagem com cortes rápidos. Para estes, a produção irá parecer demasiadamente arrastada e desnecessariamente longa. Realmente, em suas quase três horas de duração, a fita é cansativa para os olhos contemporâneos. No entanto, sua inovação anestesiou o público desta característica à época de seu lançamento, fazendo com os espectadores realmente mergulhassem na fita.

Em determinada parte da seqüência que mostra o personagem Gus se escondendo em um bar enquanto é procurado por diversos outros, é impossível não vir a lembrança da invasão frustrada da polícia ao possível esconderijo de Buffalo Bill em “O Silêncio dos Inocentes” (1991), dirigido por Jonathan Demme. Diversos momentos das cavalgadas da Klan, retratados em travellings magníficos pela câmera de Griffith, nos remetem ao trabalho de Peter Jackson na trilogia “O Senhor dos Anéis” (2001, 2002, 2003). Estes são só alguns dos exemplos de como as técnicas empregadas em meados da década de 1910 pelo cineasta sobrevivem até hoje.

Isto ressalta a importância que “O Nascimento de Uma Nação” tem para o cinema, tornando a obra imprescindível para qualquer cinéfilo e estudante da sétima arte, mesmo que sua visão de mundo degenerada cause repulsa àqueles com a noção moral dos tempos atuais.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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