Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 17 de fevereiro de 2008

Som do Coração, O

Por não querer ser absolutamente nada daquilo que já é, “O Som do Coração” mostra-se um dos melhores filmes dos últimos meses. Com simplicidade e muita ternura, ele chega para falar sobre encontros e desencontros, e a forma como todas as coisas do mundo estão interligadas e necessitam de harmonia.

A jovem Lyla Novacek (Keri Russell, de “Missão Impossível III”) é uma bela violinista. Bem criada, desde cedo estudou música clássica em uma das melhores escolas do mundo. De um outro lado, Louis Connelly (Jonathan Rhys Meyers, de “Match Point”) é guitarrista e vocalista de uma banda de rock em ascensão. As vidas destes dois já parecem traçadas para eles próprios, até o dia em que se encontram por acaso em cima de um telhado. Apaixonados por música, eles são levados pela canção “Moon Dance”, interpretada por um homem que caminha longe deles, alheio ao acontecimento que provocou. Eles são complementares e sabem disso. Depois de viverem a noite mais perfeita de suas vidas, o casal acaba separado.

Poucos meses depois, Lyla descobre que carrega um bebê de Louis. A criança nasce, mas o pai controlador da moça o entrega à adoção antes mesmo que ela acorde após o parto, falsificando sua assinatura. E pior: ele a faz acreditar que seu filho morreu. Desesperançada, a musicista não consegue recuperar seu rumo e desiste de tocar. Anos depois, ela apenas dá aulas. Paralelo a isso, o desestimulado Louis não quer mais tocar em sua banda: tudo que ele compunha era para Lyla, e se ela não está com ele, a música deixou de valer a pena.

Doze anos se passam e não muito longe dali cresce em um orfanato o determinado August Rush (Freddie Highmore, de “Em Busca da Terra do Nunca”), que tem tanta fé na vida e tanta certeza de que encontrará seus pais, que decide procurá-los, deixando-se guiar apenas pela música que está em seu coração – e no mundo.

A cineasta irlandesa Kirsten Sheridan é a típica profissional em ascensão. Depois de trilhar o caminho dedicando-se a curtas-metragens, este último é apenas seu segundo longa, sendo o primeiro a ter distribuição mundial. Assim como em sua carreira, ela chega timidamente neste trabalho. Não arrisca muito, optando por planos mais seguros, porém eficientes. Se lhe falta criatividade em suas escolhas, as emoções não são deixadas de lado. É um filme inteiramente musical, em cada segundo de sua existência na tela. Por alguns momentos, a impressão que tive foi de que a película foi construída em cima da música. Ponto para Sheridan, já que o discurso mais presente neste trabalho é justamente em cima da relação existente entre música e ambiente; música e suas relações; música e imagens.

Porém, seu principal mérito é conseguir o feito de criar um longa-metragem inteiro com tanta simplicidade, sutileza e romantismo. Sheridan traz para cá seu passado como cineasta independente, cuja principal carta na manga sempre foi baseada em fatores que estavam além do orçamento: como um bom roteiro somado a atores competentes, e uma direção funcional. Ela mantém o ritmo e consegue encantar. Pode não ser surpreendente, mas toca no principal ponto de um filme como esse: a emoção, o envolvimento. Existe certo magnetismo nessa história.

Não que Keri Russell e Jonathan Rhys Meyers não estejam bem na projeção – eles ficam bem juntos, e formam um belo e cativante casal, mas é fato que Freddie Highmore mais uma vez rouba a cena. Já o vi em melhor atuação, mas é inegável o brilho que as telas ganham quando aqueles olhos atentos entram em cena. Highmore convence como o garoto sonhador, carismático e apaixonado pela música. O brilho que aparece em seu olhar em cada passagem em que aprende mais sobre a música (aquela que o trará seus pais de volta, como ele costuma dizer) é intenso. Ele é intenso.

Outra boa aparição é a de Robin Williams (de “Uma Babá Quase Perfeita”). Depois de vê-lo em filmes desnecessários no último ano, ele enfim fez uma boa escolha. Uma das seqüências mais bonitas do longa é protagonizada por ele e Highmore, quando dá ao garoto suas primeiras lições de música e de mundo. Ele dá vida a um homem sobre o qual não sabemos nenhuma informação concreta, mas aos poucos percebemos que é bastante solitário. Williams dá a ele a profundidade necessária, de tal modo que deixe o público perceber e questionar quem é aquela criatura, e o que o transformou nessa pessoa que discursa sobre fé e harmonia, mas que não consegue colocá-la em sua vida.

Agora direção e atores de lado, o grande protagonista dessa história, o que está oculto e presente o tempo inteiro, é a música. Assim como a película, é simples e eficiente. Está ali até mesmo quando você não percebe. No ruído das ruas, nas batidas do coração e onde você menos espera. Tudo é melodia, porque tudo dentro deste filme é captado através do olhar de August Rush sobre o mundo e sua sensibilidade sempre voltada para os sons. As canções e melodias aguçam os sentidos do espectador, trabalham o tato e acabam dando uma textura a mais.

Desconfiei desse filme no minuto em que escutei seu nome: “O Som do Coração”. Mas por acaso assisti ao trailer e quase imediatamente me comovi. Essa foi a sensação que tive durante toda a exibição da película: quase instintivamente, eu queria duvidar dele, mas assim que deixava a armadura de lado, tornava-se impossível não me entregar à sua magia.

Beatriz Diogo
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