Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 24 de março de 2008

Juno

O atual mercado cinematográfico é dominado por superproduções megalomaníacas que, embora muitas delas sejam divertidas, a maioria é vazia em matéria de conteúdo. No entanto, uma garota falastrona de classe média mostrou aos estúdios que fitas inteligentes, baseadas apenas em diálogos rápidos e situações cotidianas - por mais incômodas que sejam - podem agradar e entreter tanto público quanto crítica. Este é o segredo do fabuloso "Juno".

O assim chamado "cinema alternativo" sempre foi visto pelo grande público como um circuito fechado, com o freqüentador médio das salas geralmente vendo aquelas produções como pretensiosas e excessivamente intelectualizadas. No entanto, um pequeno e aparentemente filme simples parece estar quebrando este injustificado preconceito. Trata-se de "Juno", longa que ultrapassou a marca dos US$ 100 milhões de dólares em bilheteria só nos EUA.

Se o filme falasse sobre uma invasão alienígena à Terra ou de um ataque de monstros contra alguma metrópole desavisada, a fita não estaria cumprindo nada mais do que sua obrigação para dar lucro ao estúdio que bancou mais um blockbuster caríssimo. Mas, neste caso, trata-se do reconhecimento do público a uma produção de pequeno porte, sem grandes astros em seu elenco, ancorada por um elenco soberbo, um magnífico trabalho de sua relativamente jovem equipe de produção e um texto ágil, agradável e, acima de tudo, familiar e real.

"Tudo começou com uma cadeira". Foi em uma cadeira que a jovem Juno MacGuff (Ellen Page) e seu amigo e colega de classe Paulie Bleeker (Michael Cera) perderam a virgindade, em um dia que estava passando a "A Bruxa de Blair" na televisão. Dois meses e três dias depois, Juno descobriu que, ao se tornar "sexualmente ativa" – o que isso significa mesmo? -, ficou grávida.

Descartando a hipótese de um aborto após um insólito encontro com uma amiga em uma "clínica para mulheres", ela resolve encarar todo o preconceito que viverá na escola e ter a criança, dando-a para adoção. Durante as trinta semanas de gravidez, Juno terá o apoio de sua melhor amiga Leah (Olivia Thirlby), bem como o de seu pai, o bem-humorado Mac (J.K Simmons) e de sua madrasta durona que gosta de cachorros Brenda (Allison Janney). Ao mesmo tempo, conhecemos Mark (Jason Bateman) e Vanessa (Jennifer Garner), o casal aparentemente perfeito que deseja adotar o bebê da protagonista.

O que torna este longa tão especial é a combinação feita entre um elenco perfeito, um diretor imaginativo e um texto repleto de diálogos que poderiam ter saído da boca de uma amiga nossa. Essa mistura faz com que o público fique imerso naquele peculiar universo e, rapidamente, se apaixone pela Srta. Juno "Bruxinha" MacGuff, por seu jeito meigo, sincero, imaginativo e um tanto quanto desbocado.

Esse encanto que a personagem lança ao público só existe graças ao maravilhoso desempenho de Ellen Page. A atriz canadense, de apenas 20 anos, cativa o público com uma espantosa facilidade. Page já havia mostrado que se sairia bem como protagonista de um longa em "MeninaMá.com", mas aqui ela realmente surpreendeu. Como o filme se desenrola através das relações de Juno com os outros personagens, a atriz está em praticamente cem por cento das cenas. No entanto, ela se coloca a altura do desafio. Dominando completamente a narrativa, Page faz com que, em suas inflexões, sorrisos e prantos, não enxerguemos apenas a personagem de uma história, mas alguém com tristeza e felicidade reais. Sua indicação ao Oscar foi mais do que merecida e sua carreira deve ser acompanhada com bastante interesse a partir de agora.

Michael Cera, cujo trabalho admiro desde sua participação na série "Arrested Development", consegue neste novo trabalho arrancar mais elogios meus. Em seus primeiros segundos em cena, quando recebe de Juno a inesperada notícia de sua gravidez, Cera embarca de cabeça nas inseguranças que Bleeker sente. Podemos ver nos olhos do ator todos os pensamentos que estão correndo pela cabeça do jovem corredor, pesando seu amor – reprimido – por Juno com as responsabilidades de ser pai tão cedo. Esse é apenas um exemplo da sensibilidade com que o ator conduz seu trabalho na película, que possui algumas cenas que, embora pequenas, são marcantes, tal como um curto diálogo entre Bleeker e sua mãe.

Jason Bateman e Jennifer Garner estão bem em cena. A princípio, seus personagens parecem um tanto quanto unidimensionais. No entanto, logo percebemos que há mais do que parece em Mark e Vanessa, com ambos indo a lugares inesperados durante o desenrolar da história. Bateman, principalmente, externa os conflitos de Mark de maneira cadenciada, evitando que este acabe sendo antagonizado pelo público. Já Garner comove ao colocar para nós o desejo sincero de Vanessa em ser mãe.

J.K. Simmons mostra mais uma vez o grande ator que é. Após cair no gosto do público como o impagável J.J. Jameson na trilogia "Homem-Aranha", o ator tem sido visto em papéis de maior destaque e, neste caso, ele se mostra bastante a vontade. No papel do pai da protagonista, Simmons usa o senso de humor habitual se adequando perfeitamente à narrativa, principalmente em diálogos mais complicados.

Já a sempre competente Allison Janney mostra mais uma vez sua forte presença como Brenda, fugindo totalmente do batido estereótipo cinematográfico das madrastas chatas. Ela cria uma figura maternal estável para Juno, sendo impressionante o quanto a personalidade das duas é parecida. Olivia Thirlby compõe bem sua Leah, mostrando-a com uma leveza apaixonante. A despeito de esta ter uma personalidade bem diferente da de Juno, a forte de amizade entre as duas supera qualquer diferença entre elas – até mesmo o peculiar gosto de Leah para homens.

Não posso deixar de falar ainda da pequena participação de Rainn Wilson logo no inicio da fita. Mais conhecido como o hilário Dwight da série americana "The Office", Wilson vive aqui o atendente do mercadinho onde Juno faz seus testes de gravidez, em uma divertida quase-ponta. Já que estamos falando de coadjuvantes divertidos, é impossível não mencionar Valerie Tian como Su-Chin, colega de escola que Juno encontra em frente a clínica de mulheres e com quem trava um diálogo bizarro.

Jason Reitman conseguiu, além de explorar seu excelente elenco ao máximo, expor de um modo carinhoso e divertido todas as nuances do roteiro da estreante Diablo Cody (que, acreditem ou não, é uma ex-stripper!). Reitman investe em ótimos enquadramentos durante a projeção – vide uma marcante cena de Juno em seu carro após um diálogo pesado com Mark e Vanessa. Além disso, o diretor se utiliza de recursos visuais de ótimo gosto para colocar na tela a personalidade da protagonista, vide a introdução do filme, feita de modo a vermos o mundo de Juno como os desenhos de seu quarto.

Por falar em quarto, congratulações são devidas ao departamento de direção de arte do filme, liderado por Michael Diner e Catherine Schroer. Eles criam ambientes que realmente condizem com os personagens, como a sala cheia de caixas de Mark, ou mesmo os quartos de Juno, Bleeker e Leah, representações perfeitas destes – e notem que tanto Juno quanto Bleeker possuem telefones em formato de hambúrgueres.

Na edição temos Dana Glauberman, que trabalhou com Reitman em "Obrigado por Fumar". Aqui, ela se utiliza de passagens de tempo através das estações para dividir a narrativa em capítulos, de maneira bastante natural. Mesmo a inserção de pequenos flashback em alguns instantes atrapalha o ritmo do longa. Como falei das estações do ano, o diretor de fotografia Eric Steelberg promove mudanças discretas nas cores e iluminação do filme com o passar destas.

Louve-se também a maravilhosa trilha sonora do filme, sejam as músicas originais, compostas por Matt Messina ou as composições de nomes renomados do cenário fonográfico que tocam durante a fita. Bandas como Belle & Sebastian, The Kinks e Sonic Youth podem ser ouvidas durante todo o filme, sempre em momentos-chave da produção, inseridas de maneira bastante orgânica.

Hoje em dia, são raros os filmes que despertam sentimentos positivos e sinceros na audiência. "Juno" é um maravilhoso exemplo deste tipo de obra. Tal como Paulie Bleeker, me apaixonei pela protagonista homônima do filme e realmente espero que outros também sintam isto ao assistir a esta produção mais que recomendada.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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