Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 26 de janeiro de 2008

Gângster, O

Ridley Scott nunca foi conhecido por ser um diretor muito sutil. Assim como a maioria de seus personagens, ele busca resultados a qualquer preço, não importa se choque o público ou não. Tentando se reinventar há algum tempo, o cineasta finalmente conseguiu realizar um longa digno de seus primórdios com este fabuloso "O Gângster".

Esse estilo único de Scott às vezes acerta no alvo, como nos clássicos "Alien – O Oitavo Passageiro" e "Blade Runner – O Caçador de Andróides", mas também resultou em bobagens como "Falcão Negro em Perigo" e "Até o Limite da Honra".

“O Gângster” nos mergulha em um universo assustadoramente real. Não por acaso baseado em uma história verídica, o roteiro de Steven Zaillian nos leva aos Estados Unidos do final dos anos 1960 e do começo da década de 70, quando aquele país travou a desastrosa guerra do Vietnã. Enquanto os soldados ianques se viciavam cada vez mais em drogas obtidas no extremo oeste, as grandes cidades norte-americanas, principalmente Nova York, eram entregues ao crime organizado. Isso graças a total inversão de valores que existia nas agências policiais àquela época, onde policiais prenderem bandidos era algo fora do comum, já que os mafiosos são considerados a fonte de renda subsidiária dos assim chamados homens da lei.

Assim, somos apresentados a dois homens cujas vidas correm em paralelo, embora inevitavelmente se cruzarão. O primeiro é Frank Lucas (Denzel Washington). Capanga de Bumpy Johnson (Clarence Williams III), chefão do crime no bairro afro-americano do Harlen, Lucas aprende de perto com as operações de seu patrão. Quando este falece, o ex-empregado vê a oportunidade de ascender no submundo do crime, usando sua inteligência, empreendedorismo e, principalmente, a guerra. Se aproveitando da movimentação militar entre os EUA e o oriente, Lucas consegue importar drogas direto da fonte, colocando-a nas ruas a um preço mais barato que o da concorrência, além de muito mais pura.

Enquanto isso, o detetive Ritchie Roberts (Russel Crowe) se vê em uma situação delicada. Após fazer o certo e contabilizar junto à Corporação uma apreensão de dinheiro sujo de quase um milhão de dólares, ele e seu parceiro são vistos com maus olhos por todo o seu departamento, inclusive deixados sem apoio em uma situação impossível. A honestidade de Roberts compensa quando ele é indicado por seu superior para organizar uma força-tarefa antidrogas, escolhendo a equipe a seu gosto e operando com total liberdade para pegar os chefões do tráfico.

Evitando transformar o filme em uma típica história de "polícia e ladrão", Scott e Zaillian nos mostram as nuances na vida daqueles homens. Profissionalmente bastante parecidos, ambos são homens com códigos de honra estritos e compromissados com seus trabalhos, além de não tolerarem uso de drogas por parte de seus associados. No entanto, os dois possuem trajetórias de vida bastante diferentes. Vindo de origens pobres, com sua família tendo sofrido perseguições por parte do preconceito racial, Lucas é um homem extremamente ligado aos seus, montando sua organização com familiares em lugares-chave desta.

Sua principal regra nos negócios é ser discreto, evitando sempre chamar atenção para si de qualquer maneira, vide sua discussão com seu irmão Huey (Chiwetel Ejiofor) sobre vestuário. Se aproveitando do fato de sua condição racial o colocar como mero subalterno nos olhos da polícia, Lucas consegue subir rapidamente nos negócio sem ser notado. A despeito de sua postura brutal e impiedosa no trabalho, ele é um filho amoroso e marido dedicado, passando todo o seu tempo livre com seus entes queridos e ajudando sua comunidade. Ele forja íntimos laços com o povo e com proeminentes membros da sociedade, além de jamais se deixar intimidar pelos seus colegas de ramo italianos, cuja presença é representada por Dominic Cattano (Armand Assante).

Já Ritchie Roberts é um judeu vindo de bairros pobres. Tendo crescido junto de colegas que vieram a se tornar conhecidos (e bem-sucedidos) criminosos, ele continua a ter amizades com esses indivíduos, mesmo lutando para derrubar o crime organizado. Sua atitude honesta lhe rendeu vários desafetos na polícia, contando apenas com poucos homens de confiança em sua força-tarefa. Esforçado e inteligente, ele procura se formar em Direito ao mesmo tempo em que cumpre seu dever como policial. Não tendo conseguido um casamento bem sucedido, ele pula de transa em transa sem jamais se envolver com suas namoradas.

Ele reconhece sua inabilidade de prover uma condição de vida estável para uma família, não havendo lugar para uma em sua vida de policial. Em dado momento, a ex-esposa de Ritchie (Carla Guggino) ilustra isso, afirmando que não há lugar para ela e pra o filho no coração do detetive. Como policial, Roberts sabe que não possui muita chance contra os corruptos da organização, o que o leva a assumir uma postura mais defensiva quanto a estes bandidos de distintivo, cujo maior representante na tela é o inescrupuloso detetive Trupo (Josh Brolin).

Trupo, aliás, age como um elo entre as linhas narrativas de Lucas e de Roberts, com o corrupto sendo uma constante pedra no sapato para os dois homens. O filme ainda traça um paralelo entre a guerra do Vietnã e a ascensão de Lucas, ao mesmo tempo em que nos mostra os esforços das investigações de Ritchie para conseguir chegar aos chefões do crime. No entanto, a fita não teria conseguido ser bem sucedida em seus intentos não fosse o trabalho fenomenal dos dois protagonistas e do impecável elenco de apoio da película.

Denzel Washington assume com naturalidade o papel-título do filme. Com uma atuação segura, ele constrói o multifacetado Frank Lucas. Um homem capaz de fazer um discurso sobre honra e trabalho duro para sua família e, no momento seguinte, matar a sangue frio um rival sem ao menos piscar. A motivação para Lucas agir assim, a despeito de possuir um bom caráter, é simplesmente o sofrimento que sua família passou durante sua infância. É isso que o motiva a tomar as ações brutais. No entanto, o jeito carinhoso que este possui para com sua mulher e sua mãe acaba tornando o personagem simpático para a audiência. Muitos se questionarão o porquê de Lucas não ter saído desta vida após se estabelecer como milionário. A grande questão é que este era um homem que se viu humilhado por boa parte de sua vida e que alcançou uma posição de enorme poder, a qual era mais importante para ele do que dinheiro, sendo algo pelo qual valeria arriscar tudo.

Russell Crowe apresenta-se bem mais contido que o habitual nesta sua nova colaboração com Ridley Scott. À primeira vista, a obsessão de honestidade de Ritchie parece encontrar eco em outro policial vivido pelo ator, o oficial Bud White de "Los Angeles – Cidade Proibida". No entanto, enquanto Bud via no trabalho uma forma de exorcizar seus demônios de infância, o oficio é a única coisa estável da vida do Det. Roberts. Relacionamentos para ele são meramente alívios passageiros, encontrados em seus freqüentes casos eventuais. Convicto de sua honestidade e de seu caráter, ele vê em seus colegas corruptos uma ameaça ainda maior que o crime organizado. Sua dedicação é para com o estudo da lei e sua resolução em fazê-la valer. Sua trajetória é triste e é irônico onde o policial acaba encontrando sua maior afinidade em toda a produção, nos momentos finais da película.

Já no elenco coadjuvante temos algumas participações quase tão marcantes quanto às dos principais. O inglês Chiwetel Ejiofor mais uma vez se destaca em uma produção elogiada. O ator, que já roubara cenas em "Filhos da Esperança" e "Serenity – A Luta Pelo Amanhã", mostra seu talento como Huey Lucas, o elo fraco da família. Sua vontade em se exibir o coloca em xeque várias vezes com seu irmão. Mesmo tendo fidelidade para com este, Huey não nega que se impressionou pelo jeito extravagante de um dos concorrentes de Frank, Nicky Barnes.

Barnes é vivido por Cuba Gooding Jr. como o exato oposto do personagem de Washington. É ótimo vê-lo finalmente em um papel decente e, principalmente, em um filme que não seja de se jogar fora sem ver (vide "Norbit" e "Acampamento do Papai"). Outro ator para quem devemos bater palmas em relação ao seu desempenho nesta película é Josh Brolin. Sua interpretação como Trupo é fenomenal, com o ator jamais deixando brechas para que o público crie a menor simpatia por um personagem tão deliciosamente detestável.

Em uma película onde o personagem mais complexo e palatável junto ao público é um impiedoso traficante, nada melhor que criar um policial ganancioso e perigoso – não é a toa que mesmo Ritchie tem cuidado ao lidar com ele. A sede por dinheiro do detetive é tamanha que, em um diálogo com Ritchie, Trupo chega a dizer que ambos devem cooperar para manter Lucas vivo e bem para que "a mamata continue". Ressalto ainda que esta não fora a única vez este ano que o trabalho de Brolin chamou minha atenção. O ator teve um desempenho do mesmo nível no magnífico "Onde os Fracos Não Têm Vez", um ótimo sinal para o ex-Goonie.

Já na parte feminina do elenco, o grande destaque vai para a carismática veterana Ruby Dee. No papel da mãe de Frank, ela procura jamais se envolver com as obscuras atividades do filho, embora saiba que não foi licitamente que este alcançou tamanho sucesso financeiro. Apesar disso, ela reconhece que existem linhas as quais seu garoto não pode cruzar e ela fará de tudo para evitar que isto aconteça, algo explicitado em uma cena que, sozinha, já valeu sua indicação ao Oscar deste ano. A belíssima Lymari Nadal não compromete como a esposa de Lucas, Eva. No entanto, assim como Carla Guggino como a ex-esposa de Ritchie, ela não possui muito espaço para brilhar.

Na direção, Ridley Scott conduz o filme com sua habitual firmeza, sem nos poupar dos detalhes e conseqüências mais sórdidos dos negócios de Frank, vide o close bem próximo na cena onde Lucas se livra de um rival ou mesmo as seqüências onde vemos os viciados em drogas utilizando a "Mágica Azul" do gângster. Como sempre, o cineasta conquista a platéia visualmente, criando cenas plasticamente muito bonitas e que retratam com eficácia a época em que se passa a história, além de muito bem filmadas. O que faz o diferencial aqui é que Scott jamais esquece que sua narrativa é sustentada pelos personagens, cuidando bem de seus atores e explorando-os ao máximo, contando com o roteiro amarrado de Steven Zaillian, adaptado do artigo "The Return of Superfly" escrito por Mark Jacobson.

Destaco ainda a direção de fotografia de Harris Savides. Não por acaso, esta lembra bastante a de "Zodíaco", no qual Savides também trabalhou. Ambos os filmes se passam mais ou menos no mesmo período, algo que o profissional conseguiu ilustrar nas duas películas muito bem. Na edição, Pietro Scalia jamais deixa a película ficar cansativa ou confusa, um feito incrível considerando sua duração e complexidade narrativa, com duas tramas se desenrolando em paralelo.

Não me furto a dizer que, em minha opinião, Ridley Scott realizou um dos melhores filmes de máfia desde "Os Intocáveis". Contando com um roteiro instigante, elenco irrepreensível e uma direção extremamente competente, "O Gângster" é imperdível.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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