Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 24 de março de 2008

Sicko – $O$ Saúde

Polêmico, manipulador e sensacionalista. Bem ou mal, essas palavras poderiam perfeitamente descrever “Sicko”, mas há outras maneiras de se ver o longa-metragem. Preocupado em passar o que pode ser chamado de atestado de incompetência do sistema público de saúde, Michael Moore deixa de lado questões técnicas para focar o forte de seus trabalhos: o furo.

Antes de assistir ao filme, li uma entrevista em que Michael Moore descrevia seu filme como “uma comédia sobre as quase 45 milhões de pessoas sem sistema de saúde no país mais rico do mundo”. Na ocasião, ele estava em Cannes apresentando sua película, e eu quase consegui visualizar tudo que viria em seguida.

Ele chegou a ser intimado pelo Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, sob a acusação de que sua viagem a Cuba havia sido uma violação ao embargo que restringe aos cidadãos americanos viagens ao país em questão. Isso foi só o começo da polêmica do novo filme de Moore: para fazer seu documentário, Moore levou ao país de Fidel Castro americanos que ficaram doentes após trabalharem nos escombros do World Trade Center, para receberem seu devido tratamento por lá.

Em “Tiros em Columbine”, de 2001, ele põe abaixo a política do livre acesso às armas de fogo, a facilidade em obtê-las; já em "Fahrenheit 11 de Setembro", de 2004, ele polemizou sobre a suposta guerra americana contra o terrorismo. Aqui, ele cola em outra guerra: a dificuldade do acesso à saúde. Simples assim, mas difícil de acreditar, afinal, os Estados Unidos da América, um país de primeiro mundo, e que representa uma das maiores potências, não consegue dar assistência em um dos setores primários para uma sociedade.

A principal mira de sua arma/câmera giratória dessa vez são as empresas privadas, que fornecem (ou não, como é o caso) serviços na área de saúde. O roteiro ganha pontos por ser uma questão tão atual e não muito longe da realidade em geral. No Brasil mesmo, sofremos com os convênios – que cobram caríssimo e não oferecem serviços equivalentes.

Se o documentarista é manipulador ou não, há discussões a partir desse ponto. E aí vem a questão que eu considero a principal: todo documentário é manipulador, porque se trata da maneira de uma pessoa “x” ver as coisas. Cada um tem a sua abordagem, e isso, para o bem ou para o mal, é mais pura forma de manipulação. “Sicko” entra de cabeça nesse conceito, em que se torna necessário encarar seus pontos positivos e negativos. Documentário também pode significar denúncia, como, teoricamente, Moore se propõe – pelo menos ao que parece.

Sua maneira de contar/noticiar é excessivamente sensacionalista. Às vezes fica a dúvida qual seu papel mesmo nos projetos a que se propõe: se simplesmente detonar ou uma questão que visa o bem estar coletivo, o acesso às informações. É interessante pensar em sua proposta de denunciar algo que precisa de espaço, que precisa ser levado adiante. Entrar de cabeça na querela e colocar tudo em pratos limpos. Ou ao menos fornecer conteúdo que facilite esses esclarecimentos.

O problema de Moore é que suas fontes não são de todo confiáveis. É aí que seu roteiro despenca: quando se assiste de uma primeira vez seu material, a reação inicial é assinar embaixo de tudo que foi dito, porque o filme causa uma excitação, uma indignação que brota nas pessoas pelo que eu acredito ser uma vontade oculta de ser ouvida. E é isso que ele faz: coloca a boca no trombone, vai à frente e aponta o dedo sem se importar com conseqüência nenhuma. Cumpre o papel que muita gente sente necessidade que se veja cumprido. Mas é só colocar um olhar mais atento sobre aquele conteúdo para ver que existem falhas grotescas.

A partir do momento que ele se propõe a fazer denúncia, teoricamente deveria dar margem para que cada qual tomasse seu lado e formasse seu ponto de vista. E aí ele se torna duplamente manipulador. O problema de seus dados é que alguns deles não conferem, ou simplesmente não há maneira de checar. O problema do sensacionalismo é justo esse: até que ponto é confiável?

Como se não bastasse tudo isso, há ironia presente durante toda a projeção – típica característica de Moore. Não sou exatamente fã do seu trabalho, mas se há uma coisa que admiro no que ele faz é o fato de vestir a camisa, assumir sua posição de provocador, que está ali para fomentar discussões e que não está nenhum pouco preocupado com a maneira como seus projetos serão vistos.

Em “Sicko”, sua veia crítica está ainda mais afiada. Absolutamente nada passa em branco diante de sua câmera. Ela é ágil como seu criador, é dura e aproveita-se de uma edição ainda mais atenta para fazer-se notada. E se ele se aproveita das desgraças alheias para fazer seu percurso, aí já é outra conversa.

Seu único pecado talvez seja sempre cair no exagero, como se uma corrente megalomaníaca invadisse seu cérebro e ele quisesse fazer com que o espectador engolisse o que diz de qualquer jeito.

Alguns sairão do cinema achando que Michael Moore é um gênio, um herói ou qualquer coisa do tipo. Outros que ele é tão ou mais desleal que seu arquiinimigo George W. Bush, que já foi desmentido dezenas de vezes, inclusive admitindo suas falhas. Mas o mais interessante de tudo é perceber como ele consegue dividir seu público. E nisso, é inegável a afirmação de que o controverso diretor é competente no que faz, em sua constante dualidade.

Beatriz Diogo
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