Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Coisas que Perdemos Pelo Caminho

Como levar a vida após a morte da pessoa que se ama? Esta é a pergunta que move os personagens de "Coisas Que Perdemos pelo Caminho".

Apesar de seu tema ser bastante semelhante ao abordado por "P.S. Eu Te Amo", este primeiro trabalho hollywoodiano da cineasta dinamarquesa Susanne Bier lida com o tema da perda de um modo bem mais pesado e abrangente. Contando com um elenco consagrado e em sintonia, o filme desenvolve bem sua premissa, sempre guiado por aquelas figuras carismáticas em cena.

O longa nos conta a história da família Burke. O chefe desta, Brian Burke (David Duchovny), é um pai devotado, marido carinhoso e arquiteto de sucesso e, acima de tudo, um bom homem. Essa característica preocupa ocasionalmente sua esposa, Audrey (Halle Berry), que vê um sinal de ingenuidade. O casal tem dois filhos, a espevitada Harper (Alexis Llewellyn) e Dory (Micah Berry), o caçula da família. Brian tenta ajudar seu amigo de infância Jerry Sunburn (Benício Del Toro) a se reerguer na vida. Outrora um advogado talentoso, Jerry caiu no inferno das drogas e agora mora em um moquifo situado em um bairro barra-pesada, com apenas Brian lhe dando apoio financeiro, amizade e, principalmente, confiança. No entanto, o bom coração de Brian será o estopim de um evento que mudará a vida de todas estas pessoas, quando este é baleado tentando ajudar uma mulher vítima de violência doméstica.

Após a morte de Brian, Audrey fica perdida na vida. Sem conseguir dormir e estourando com seus filhos, ela decide que precisa de ajuda para seguir em frente. Assim, ela chama Jerry para que este a ajude em sua casa, em um processo que ajudará a ambos a restabelecer seus rumos. Jerry tenta encontrar em Audrey e nas crianças o apoio que tinha em Brian, enquanto os Burke precisam de algo para prosseguir em suas vidas. Também procurando ajudar Jerry em sua retomada estão a ex-viciada enfermeira Kelly (Alison Lohman), que tem um leve interesse romântico no ex-advogado, e Howard (John Carroll Lynch), vizinho dos Burke que se torna amigo de Jerry.

A dinâmica entre Jerry e os Burke é bastante interessante. Vemos que a amizade entre o viciado e Brian é movida pela confiança que os dois homens tinham um pelo outro, algo que nem mesmo a dependência química de Jerry conseguiu abalar. Esta relação era a única âncora de Jerry no mundo real. Sem ela, ele afundaria ainda mais rapidamente. Daí surge Audrey, que tenta terminar o resgate de Jerry que seu marido não conseguiu. No entanto, ela mesma tem suas tentações, chegando até mesmo a perguntar a Jerry sobre o efeito da heroína e desejando escapar de seu luto. Uma cena interessante mostra Jerry conseguindo que Dory mergulhasse, algo que o garoto receava e que Brian não havia conseguido com que seu filho fizesse. A reação de Audrey a este feito é de dor, já que, segundo ela, é uma vitória que deveria ter sido de seu falecido esposo. Porém, ela mesma, em sua luta para "salvar" Jerry, tenta alcançar algo que Brian não havia conseguido em vida.

O roteiro do estreante Allan Loeb é bem amarrado, no entanto falha ao tentar, em algumas passagens, ensaiar um romance entre Audrey e Jerry, que não faria sentido no contexto da história, felizmente não dando prosseguimento a tal trama. Já o elenco tem um desempenho bastante positivo. Halle Berry, saindo do desastroso suspense "A Estranha Perfeita", mostra que se dá melhor interpretando figuras do cotidiano, vivendo com bastante intensidade sua personagem. David Duchovny, apesar de ficar pouco tempo em cena, mostra que não sabe viver apenas figuras excêntricas (vide Fox Mulder – "Arquivo X" – e Hank Moody – "Californication") dando uma boa impressão como o bom-moço Brian.

As crianças foram uma surpresa positiva para o longa. Geralmente papéis infantis tendem a amadurecer demais os pequenos em cena ou tratá-los como adultos deficientes. Já aqui, Harper e Dory realmente têm reações compatíveis com suas idades. Alexis Llewellyn se sai muito bem como a filha mais velha do casal Burke, tendo uma boa entonação em cena e sabendo se impor. Já Micah Berry, em sua primeira participação na frente das câmeras, ainda não possui experiência em cena, mas releva este detalhe com seu carisma infantil.

John Carroll Lynch, como Howard, é uma ótima presença em cena. O ator, que esteve recentemente no fenomenal "Zodíaco", sempre agrada quando aparece com seu personagem tentando ganhar ares mais descolados com sua amizade com Jerry, enquanto tenta se separar da esposa mandona. Já Alison Lohman aparece meio apagada nesta produção. Apesar de sua personagem ter uma boa participação no último ato do filme, a atriz parece estar sempre no piloto automático.

Já Benício Del Toro tem mais uma ótima interpretação como Jerry. O ator encarna seu personagem com tamanha força e convicção que se torna impossível não torcer por sua recuperação. Sempre com seu inseparável discman, vemos o esforço de Jerry em voltar a fazer parte do mundo e sua vontade em ser importante na vida daqueles que o cercam. Durante duas cenas particularmente complicadas, no meio de uma crise de abstinência, Del Toro nos mostra, com uma vitalidade impressionante, a dor e o sofrimento (físico e mental) pelo qual Jerry passa.

Susanne Bier se sai bem em sua primeira investida em Hollywood. Após dirigir o elogiadíssimo "Brothers", assumir uma produção norte-americana foi um novo desafio para a dinamarquesa. No entanto, ela comete seus deslizes, abusando um tanto demais de closes em alguns momentos. Além disso, sua decisão de utilizar uma narrativa não-linear no começo do filme é totalmente despropositada, sendo inclusive abandonada após o primeiro ato.

A equipe técnica de Bier é quase toda egressa de seus longas anteriores. A trilha sonora original ficou por conta de Johan Söderqvist, que se utiliza de boas melodias para exprimir as emoções dos personagens. Neste quesito, vale destacar a bela música-tema de Gustavo Santaolalla ("Babel"), além da ótima utlização de músicas gravadas por artistas clássicos do rock como Frank Zappa e a banda Velvet Underground, presenças constantes no discman de Jerry.

Já a direção de fotografia de Tom Stern ("Cartas de Iwo Jima") faz apenas o "arroz com feijão". A edição, realizada pela antiga colaboradora de Bier, Pernille Bech Christensen, em conjunto com Bruce Cannon ("Quatro Irmãos"), oscila entre momentos ruins – como a já citada narrativa não linear no primeiro ato – e ótimos, como a revelação do que aconteceu com Brian, tendo um saldo positivo em tal quesito.

Um drama eficiente, "Coisas Que Perdemos Pelo Caminho" não é um filme imperdível, nem conta com algum conceito cinematograficamente revolucionário, mas vale a pena ser conferido pelo bom trabalho de seu elenco, principalmente pelo sempre estupendo porto-riquenho Benício Del Toro.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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