Calcado em uma magistral interpretação de Marion Cotillard como a personagem-título, "Piaf - Um Hino ao Amor" é um belíssimo trabalho do cinema francês que merece ser conferido por todos.
Algumas pessoas nascem com um dom especial. Edith Piaf nasceu para cantar, pura e simplesmente. No entanto, uma vida repleta de tristezas calou essa voz magistral antes do tempo. A trágica trajetória da cantora francesa é retratada nessa cinebiografia, escrita por Isabelle Sobelman e Olivier Dahan, com esse último também assinando a direção da película, intitulada aqui no Brasil de “Piaf – Um Hino ao Amor”.
Devo confessar que conheço muito pouco das músicas de Piaf, e menos ainda da vida desta, assim não podendo apreciar se a fita segue fielmente a trajetória da cantora. Portanto, me atentarei à fita apenas como um filme. Extremamente ambiciosa em seu escopo, a produção acompanha a biografada desde seus cinco anos até o leito de morte, em uma história que atravessa décadas e repleta de infortúnios e revezes.
O filme abre com Edith, já debilitada, no palco e retorna para mostrar sua sofrida infância. Nascida Edith Giovanna Gassion (vivida aos cinco anos por Manon Chevallier), ela foi abandonada pela mãe, Anetta (Clotilde Courau), que fora tentar seguir a carreira de cantora. A criança foi levada pelo pai para viver com a avó num bordel, onde fora cuidada pelas prostitutas lá residentes, principalmente por Titine (Emmanuelle Seigner), que se apegou à menina como se fosse sua filha. Desde então, Edith já tinha uma saúde debilitada, tendo ficado temporariamente cega por um período, quando é apresentada por Titine à fé em Deus e, principalmente, em Santa Teresa.
Alguns anos depois, ela é reclamada pelo pai, que a leva para o circo onde trabalhava como contorcionista. Aos 10 anos (agora vivida por Pauline Burlet) vai viver nas ruas, onde ela começa a cantar para completar o número do pai, que trabalha agora como artista de rua. Já adulta, Edith (Marion Cotillard), tal qual sua mãe, trabalha como cantora nas ruas para sobreviver, junto de sua melhor amiga, Simone (Sylvie Testud).
A sorte dela começa a mudar quando é descoberta pelo empresário Louis Lepleé (Gérard Depardieu), que a leva para cantar nos melhores clubes e cabarés de Paris, onde ela impressiona a alta sociedade francesa, se tornando La Môme Piaf (O Pequeno Pardal). No entanto, após a morte de Lepleé, sobre a qual fora interrogada pela polícia, Edith cai em desgraça junto ao público, se reerguendo graças à ajuda de Raymond Asso (Marc Barbé), que a transforma, finalmente, em Edith Piaf. A partir daí, o filme narra a ascensão, os diversos amores da cantora, em principal o boxeador Marcel (Jean-Pierre Martins), e a morte deprimente de Edith, que faleceu aos 47 anos financeiramente quebrada e extremamente debilitada por conta do uso abusivo de álcool e morfina.
Para funcionar, a produção precisava de alguém que conseguisse realmente encarnar Edith Piaf na tela. A atriz Marion Cotillard faz mais do que isso. A atuação magistralmente hipnótica da atriz captura o público desde sua entrada em cena. Cada movimento, cada gesto, até mesmo a postura desengonçada de Edith, tudo fora feito de uma maneira tão orgânica que se torna impossível não enxergar uma pessoa real, não uma mera representação. Vivendo Piaf em diversas fases de sua vida, Cotillard mostra um alcance tremendo em cena, desde a juventude tresloucada da cantora até a sua transformação em intérprete-chave da cena musical francesa, jamais exagerando na caracterização, mesmo nos momentos mais fortes da película, tal qual a notícia de um trágico acontecimento envolvendo Marcel.
É um tanto complicado falar de qualquer outra atuação no filme, tendo em vista que o trabalho da protagonista consegue fazer sombra em todos os seus companheiros de cena. No entanto, vale destacar a curta aparição de Gérard Depardieu como o primeiro mentor de Piaf, Louis Lepleé, além do excelente trabalho das jovens atrizes Manon Chevallier e Pauline Burlet, que interpretam Edith durante a infância.
Outras performaces que valem a pena serem mencionadas são as das atrizes Emmanuelle Seigner e Sylvie Testud. A Titine vivida por Seigner é a única figura materna na vida de Edith e a cena da despedida das duas é absolutamente tocante. Já Testud concede a Simone, companheira de todas as horas de Piaf, um ar de amizade inabalável. Mesmo na cena onde a frustração de Simone transborda, dado ao excesso de atenção concedido por Edith a Marcel, é notável ali o amor que Simone sente por ela.
O trabalho de direção de Olivier Dahan é digno de aplausos. O cineasta, dono de um senso visual único, consegue imprimir a todas as cenas um “algo” especial. Destaco duas delas: o “nascimento” de Edith Piaf, onde não ouvimos a música entoada por esta, mas sim vemos a reação da platéia à primeira interpretação musical feita pela antiga Pequeno Pardal; e quando Edith descobre um acontecimento com Marcel. Tal cena, filmada sem cortes num plano que passa por diversos cômodos da residência da cantora, é absolutamente primorosa, em uma mistura perfeita de interpretação por parte dos atores e do ótimo trabalho feito pela equipe técnica.
A fotografia do premiado Tetsuo Nagata é primorosa, conseguindo imprimir uma tonalidade de cores e luzes mais que adequadas para cada diferente período da vida de Piaf mostrado em cena. A direção de arte e o figurino da produção também estão soberbos, nos teleportando para as diversas locações e épocas percorridas pela produção, com um pequeno auxílio de efeitos especiais. Congratulações também são merecidas ao departamento de maquiagem do filme, que realizou um trabalho competente ao caracterizar Marion Cotillard nas diversas fases de sua personagem.
No entanto, o filme escorrega em sua edição. Apesar de o editor Richard Marizy incluir diversas transições extremamente elegantes, o excesso de saltos cronológicos, aliados ao verdadeiro batalhão de figuras as quais Edith conhece ao longo de sua vida, tornam a narrativa por vezes um tanto quanto confusa. No caso, um pouco mais de linearidade seria preferível para a fita.
Apesar de menos que perfeito em alguns pontos, principalmente por se furtar a aprofundar certos aspectos e acontecimentos da vida da biografada, que são apenas mencionados (como a filha de Edith, morta ainda aos três anos de idade ou dar maiores detalhes da vida amorosa da Pequeno Pardal), “Piaf – Um Hino ao Amor” é um belíssimo filme que merece ser conferido. O longa deve muito de seu mérito à extraordinária interpretação dada por Marion Cotillard, desde já fortíssima candidata a quaisquer prêmios que possa – e irá – vir a concorrer.