Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Cães de Aluguel

Definitivamente, a escassez de elogios é nítida quando se trata de clássicos como “Cães de Aluguel”. Um intenso e trabalhado projeto do mestre Tarantino que mostra uma classe fora do comum para comandar este que considero como um “prefácio” para “Pulp Fiction”.

Para quem desconhece o filme ou acha que é apenas mais uma das experimentações de Tarantino, trata-se do nascimento de uma mente cheia de paradigmas e idéias mirabolantes para se contar uma história que, neste caso, não passaria de um clichê mal abordado nas mãos de um cineasta qualquer. Através de uma de suas características marcantes (a narrativa não linear), Tarantino traz a história de um grupo de ladrões profissionais que é contratado para um serviço por Joe Cabot e seu filho Eddie. O plano é tão esquematizado que os seis criminosos atendem por nomes falsos para não revelarem nada sobre suas vidas pessoais. No entanto, o que era para ser um sucesso acaba por se tornar um desastre. Ao tentarem executar o plano, algo não sai como o planejado e a polícia descobre tudo, trazendo graves conseqüências para o grupo. Assim, os remanescentes após o fracasso tentam descobrir o que falhou e quem os entregou, já que suspeitam de traição. Baseada nesta idéia que acompanha o longa até o seu desfecho, a trama se desenvolve mostrando como todo o esquema foi planejado com cada um dos personagens e como cada um deles irá reagir com as surpreendentes reviravoltas da história.

Seria uma hipocrisia descarada não enaltecer a criatividade e originalidade de Tarantino em se tratando de sua qualidade inquestionável como roteirista. Ele tem o dom de fazer mirabolantes tramas com uma facilidade inacreditável, tendo como prova este que é um roteiro muito perto do impecável, se não o for. Nele, o cineasta une elementos simples e que poderiam ser em um piscar de olhos transformados em mais uma história pífia hollywoodiana. Mas não com Tarantino, que logo em sua estréia nas telonas quebra toda a linha de raciocínio e divide uma história comum de um roubo em vários pedaçõs espalhados de maneira não cronológica e lógica para trazer mais tensão e atração para o filme. Com um surpreendente desenvolvimento da trama através de cenas incríveis e muito bem elaboradas, Tarantino brinca com a mente do espectador a cada frame de “Cães de Aluguel” para poder manipular da maneira como quer o resultado de suas seqüências e, assim, revelar momentos em que quer os fatos da história.

Se não cabem elogios para o roteiro, covardia maior ainda é tentar explicar a cabeça de Tarantino como diretor. Uma verdadeira aula de planos, seqüências de cenas e narrativas que definitivamente sagrou-se como marca registrada. Para ilustrar melhor o que cito nesta crítica, veja bem a cena em que Steve Buscemi e Harvey Keitel estão brigando e a câmera se afasta para captar a chegada de Michael Madsen, ou então a cena em que o último ator citado está prestes a queimar o policial no cativeiro. Tarantino mostra um controle das cenas com maestria e trabalha os planos e a narrativa de acordo com o que a cena pede e, por muitas vezes, nem isso. Ele apenas explora suas idéias que inovam até hoje o cenário cinematográfico.

Entretanto, Tarantino não poderia ser o único brilho do longa. O elenco escolhido pelo cineasta é absurdamente competente e conta com atores que, se já não eram consagrados, passaram a ser figurinhas marcadas em Hollywood. Harvey Keitel, Tim Roth, Michael Madsen, o próprio Tarantino, o já falecido Chris Penn e Steve Buscemi se revezam como destaques e impressionam com atuações convincentes. Keitel transparece em sua personagem uma mistura de experiência e desespero com a mesma audácia que Tim Roth agoniza profundamente beirando a morte. Da mesma maneira, Madsen incorpora sua personagem de maneira simples e objetiva, demonstrando a sua forte personalidade. Chris Penn é outro que se destaca pela crescente atuação, chegando ao auge na cena final envolvendo o pai de sua personagem e o Mr. White (Harvey Keitel). Para fechar com chave de ouro o time de astros, Buscemi demonstra um profissionalismo fora do comum, enquanto Tarantino abre o longa com a memorável cena em que fala sobre “Like A Virgin”, de Madonna, falas que se tornaram clássicas e referências nos cinemas. Mais uma vez, o cineasta mostra uma incrível noção de como explorar os diálogos comuns e cotidianos.

Outra curiosidade que pode ser destacada positivamente no longa é o ritmo dado às cenas. Repare que, diferentemente de “Pulp Fiction”, que em grande parte é constituído de cenas com muita ação e movimentação, “Cães de Aluguel” é um filme mais estático, que explora ao máximo o conteúdo das cenas. O fato de o filme ter esta característica é mais do que benéfico, já que este é um ponto crucial para as intenções de Tarantino. Ele deixa com que as seqüências desenvolvam-se naturalmente, não forçando qualquer tipo de situação para tornar a trama mais atraente. Muito pelo contrário. O cineasta usa de tal artifício principalmente para fazer com que as revelações aconteçam de maneira simples e, ao mesmo tempo, com uma sofisticação típica de seu estilo, que surpreende pela essência cotidiana em sua idéias.

Enfim, prato cheio para quem admira o mundo cinematográfico. Mais uma aula de como aproveitar uma idéia sem torná-la maçante ou cansativa. E detalhe: como já disse mais de uma vez, trata-se da estréia de Tarantino nos cinemas, fator que enaltece ainda mais a altíssima qualidade do diretor. As nove estrelas ficam por conta deste brilhantismo incomparável. Apenas não concedo dez por achar que “Pulp Fiction” realmente é sua superação. Assim, considero “Cães de Aluguel” como uma espécie de “prefácio” para o longa de 1994. Definitivamente imperdível!

Ícaro Ripari
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