Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 27 de setembro de 2007

Homem que Desafiou o Diabo, O

Adaptado do romance “As Pelejas de Ojuara”, de Nei Leandro de Castro, “O Homem que Desafiou o Diabo” ganha em misticismo, mas perde em comédia. Retratando a vida de um caixeiro-viajante nordestino, o filme revela-se apenas um bom entretenimento.

Marcos Palmeira sai das telinhas para encarnar Zé Araújo nas telonas. Ele é um típico conquistador que não resiste a um rabo de saia que chega de mala e cuida à cidade de Jardim dos Caiacós. Tentando se estabelecer, Zé Araújo conhece o Turco (Renato Consorte), dono de um comércio da região e pai da quarentona Dualiba (Lívia Falcão). Em uma noite de festa, Zé Araújo tira a virgindade de Dualiba, que logo conta para o seu pai para forçar um casamento. Sem alternativas, Zé Araújo começa a lidar com a vida conjugal, tentando matar o insaciável desejo sexual de Dualiba e vivendo com o autoritarismo do sogro. Mesmo casado, o protagonista não deixava de se engraçar para as outras mulheres da região. Desconfiada, Dualiba acaba armando um barraco para o marido, que logo se vê na boca maldosa dos moradores. É quando um de seus conhecidos faz uma brincadeira de mal gosto que Zé Araújo decide chutar os anos de humilhação e começar uma jornada pelo sertão defendendo os desfavorecidos e buscando o próprio destino. Zé Araújo se transforma em Ojuara (Araújo ao contrário) e, em uma de suas noites na mata, enfrenta cara-a-cara o Cão Miúdo (Helder Vasconcelos), um dos disfarces do “coisa ruim”, além de conhecer personagens estranhos e se apaixonar pela jovem prostituta Genifer (Fernanda Paes Leme).

Filmes nacionais que retratam um regionalismo exarcebado têm tendência a seguir as linhas de clichê da vida do sertanejo. Sotaque carregado, festas típicas, vestidos quadriculados, chapéu de couro e cavalos são apenas alguns componentes do cenário e figurino. Em “O Homem Que Desafiou o Diabo”, Moacyr Góes faz com que tais regionalismos não soem artificiais, por mais que acabe generalizando os costumes. O diretor consegue extrair da trama um resultado muito mais positivo do que fez em seu trabalho anterior, a comédia “Trair e Coçar, É Só Começar”, que também investia no lugar comum da vida de uma empregada doméstica. A diferença é que a história de Ojuara segue uma linha heróica que se aproxima da fantasia, desta vez ambientada na secura nordestina. Em “Trair e Coçar”, a urbanidade do filme acabou levando a personagem principal a certo nível de depreciação que não ficou interessante em cena. Com Ojuara, Góes assume o controle de uma lenda que revive a idéia de herói já vista, por exemplo, por Macunaíma ou Vadinho, de “Dona Flor e Seus Dois Maridos”.

O principal acerto do texto de Góes está em manter a essência fantasiosa, investindo em diálogos bem estruturados e proseados, mesmo aqueles mais gratuitos. São inúmeros os momentos que as imagens ficam em segundo plano e o poder das rimas ou das exclamações gritadas pelos personagens ganham destaque. A incessante aventura de Ojuara pelo sertão o torna um invencível, e Góes não esconde isso em nenhum momento. Ao contrário do que poderia soar falso, Ojuara não é visto apenas como um valentão, mas sim como alguém buscando se desapegar à vida que tinha, como se precisasse provar para si mesmo que era muito mais do que seu sogro e esposa o tornaram. Ao mesmo tempo que é místico, o roteiro credita momentos palpáveis. As cenas de Ojuara com o Preto Velho, vivido pelo louvável Antônio Pitanga, passa a sensação fétida do local e mexe com sensações de todos os gêneros, desde o suspense até a comédia, quando o Cão Miúdo aparece. Este, por sinal, é um personagem que perde destaque para o caso amoroso do protagonista, mas no final revela-se de extrema importância para que Ojuara consiga determinar metas em sua vida.

O ponto que Góes não acerta é na construção temporal da história. As subtramas acontecem muito rapidamente, sem que o público perceba com naturalidade as alterações de tempo que acontecem de um fato a outro. Todas as aventuras de Ojuara se empilham e até o próprio protagonista chega a comentar em um determinado momento que nem ele conseguiu ver o tempo passando. Mesmo com a rapidez, o filme ainda se torna longo. Por mais intencional que possa ser, o enredo ficou prejudicado principalmente por distanciar os objetivos de Ojuara do espectador. São tantas as aventuras que, quando o clímax precisa ser instaurado e todas as perspectivas de Ojuara são trazidas de volta, há uma ruptura negativa. No final do filme, fica a lição e Ojuara continua como herói, o cabra macho que enfrentou o diabo, mas o paralelismo de sua paixão por Genifer (com G mesmo) não nasce espontaneamente, por mais que Marcos Palmeira e Fernanda Paes Leme tenham química em cena. Outro quesito negativo fica em relação à trilha sonora, repetitiva e estridente. São poucos os momentos explorados pelo silêncio ou que utilizam as canções com segurança.

Por outro lado, o trabalho na película para variar entre tonalidades, principalmente a amarelada no começo da trama e a azulada nos momentos finais, estão bem empregadas por combinar o registro das imagens de um sertão pobre, seco e que se aproxima da realidade. A textura da película envelhece o filme e perde profundidade de campo, porém não deixa de registrar belos momentos fotográficos, como Ojuara cavalgando entre as estradas secas, ou parando em um riacho para se refrescar. A direção de arte, figurino e maquiagem fizeram trabalhos competentes, distanciando a produção de uma visão de novela televisiva. A pouca afinidade de alguns diretores brasileiros em deixar as influências teatrais e televisivas de lado ao compor um filme continua sendo uma das grandes deficiências do cinema nacional, mas nisso “O Homem que Desafiou o Diabo” ganha originalidade e conquista seu quê de carisma, gerado principalmente pelo bom desempenho do elenco.

Marcos Palmeira interpreta um cabra macho que vive à base de cachaça e mulher. Apesar do estereótipo, o ator consegue se manter estável do começo ao fim, mostrando sua vulnerabilidade somente na hora de resolver o clímax. Fernanda Paes Leme retrata a juventude sem perspectiva do sertão. Bela e sonhadora, a prostituta Genifer serve como válvula de escape para os sonhos de Ojuara e é correspondido. Lívia Falcão participa apenas do prólogo, sendo esquecida posteriormente. Talvez isso não fizesse diferença se o trailer não tivesse dado tanta ênfase à Dualiba, deixando o espectador frustrado por tê-la pouco tempo em cena. Até porque é dela que sai o personagem mais convincente e engraçado. Os momentos de Dualiba e Ojuara geram risadas e dão espaço para o drama após o prólogo, com raros momentos de comédia. Ainda no elenco aparecem Flávia Alessandra e Sérgio Mamberti, dois veteranos que também são pouco aproveitados, bem como Helder Vasconcelos vivendo o Cão Miúdo, mas mesmo assim conseguindo agradar e mostrar talento.

“O Homem Que Desafiou o Diabo” é uma típica história nordestina que investe nos conceitos de herói, destino e fantasia. Com suas eventuais falhas, o longa ainda tem carisma e agrada a quem gosta de fugir das comédias baratas nacionais que tanto movimentam o público, mas pouco agradam. Não é um filme para a vida toda, mas tem carisma.

Diego Benevides
@DiegoBenevides

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