Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 09 de agosto de 2007

Central do Brasil

O premiado longa-metragem de Walter Salles (“Terra Estrangeira”), vencedor do Urso de Ouro de Melhor Filme e Melhor Atriz (Fernanda Montenegro); do Globo de Ouro por Melhor Filme Estrangeiro; e indicado a dois Oscars, “Central do Brasil” reascende a fome brasileira por filmes nacionais de qualidade.

Num momento em que o cinema nacional começava a tentar dar a volta por cima, buscando uma nova identidade e um brilho que havia sido perdido, surge “Central do Brasil”, um longa que começou despretensiosamente e acabou levando milhares de espectadores às salas de cinema, criando uma nova concepção de mostrar o universo nacional.

O roteiro assinado pelo trio Marcos Bernstein (“Terra Estrangeira”), o próprio Walter Salles e João Emanuel Carneiro (“A Dona da História”) traz uma protagonista que não é exatamente uma heroína, mas virá a tomar um papel talvez ainda mais profundo com uma criança que conhece por acaso. Dora (Fernanda Montenegro) trabalha na estação Central do Brasil, no Rio de Janeiro, onde ganha a vida escrevendo cartas para analfabetos, cartas essas que ela sequer envia para ficar com o dinheiro dos selos. Certo dia, ela produz uma dessas para uma mulher que viaja com o filho e busca o paradeiro do pai do menino, que sonha em conhecê-lo. Josué (Vinícius de Oliveira), o menino, se vê sozinho no mundo quando a mãe é atropelada e morre na saída da estação. Contrariada, Dora resolve cumprir a tarefa de viajar o Brasil para tentar entregar a criança ao seu responsável, quase em uma tentativa de pagar pela falta de ética com que tem agido.

Walter Salles mostrou nesse trabalho um profundo amadurecimento, tratando delicadamente de uma história que poderia facilmente ter desviado de seu caminho pelo uso de apelos. Se em “Terra Estrangeira” tínhamos quase um grito de socorro contra um país que até então parecia adormecido diante de uma forte crise econômica, aqui ele consolida a busca por personagens que formam a imagem do que são esses brasileiros, de como eles enfrentam o dia a dia e sua vontade de seguir sempre em frente. É um filme que leva quem o assiste a chorar, porque traz incutido nele uma quantidade enorme daquilo que parece ser a realidade. A precisão no trabalho deste diretor comove e a trama funciona.

Fernanda Montenegro é acima de tudo uma excelente profissional, dedicada e perfeccionista ao extremo. Despindo-se da vaidade que é atribuída a alguns profissionais da área, ela se entrega de maneira que só uma verdadeira diva como Fernanda poderia ter feito. Em uma das curiosidades lançadas sobre o longa na época de seu lançamento, surgiu a história de que durante as gravações na estação, a personagem dela era tão convincente que algumas pessoas que andavam casualmente pelo local realmente paravam para contratar seus serviços. Encantando com isso, Salles chegou a captar alguns desses momentos e colocá-los na versão final.

O iniciante Vinícius de Oliveira não ficou atrás, deixando claro o motivo de ter sido escolhido para o papel entre mais de mil e quinhentos meninos. Sincero, ele mostrou através do olhar o que às vezes não precisava dizer. Vivendo um personagem com certa carga dramática, Vinícius atuou com naturalidade e impressionou pela força com que interpretou. Ainda tratando do elenco, há que ser citado o show à parte dado por Marília Pêra na pele da amiga trambiqueira de Dora.

Coroando esse cenário que entrega um Brasil limpo e verdadeiro, está a fotografia de Walter Carvalho, que dá às imagens o direito de terem crédito por si próprias. Sem desmerecer e nem favorecer excessivamente, promove a interação com o público local ao ponto de que as locações possam ser facilmente reconhecidas ao deixar que elas mantenham sua identidade inalterada.
Há que se falar ainda da belíssima trilha sonora, composta pela bem sucedida parceria formada entre Jaques Morelenbaum (“O Quatrilho”) e Antônio Pinto (“Cidade de Deus”). Carregando a responsabilidade de pontuar cada um dos momentos tão bem traçados por Salles, a dupla demonstra afinidade com a proposta e complementa cenas em que se faz de profunda necessidade.

“Central do Brasil” é um filme necessário e quase obrigatório para quem é fã do bom cinema e tem sede de conhecer o trabalho nacional que se concretiza cada dia mais.

Beatriz Diogo
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