Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 09 de agosto de 2007

Cheiro do Ralo, O

Reunindo algumas das cabeças mais criativamente insanas do cinema e da litaratura nacional, "O Cheiro do Ralo" se revela não só como uma fantástica comédia de humor negro, mas também um dos melhores filmes nacionais desta geração.

É um pouco complicado falar de “O Cheiro do Ralo”. Essa comédia de humor negro dirigida por Heitor Dhalia, que provou seu talento para o bizarro em “Nina”, nos coloca de cara com um mundo que, apesar de lembrar muito aquele em vivemos, com certeza não é o nosso. Esta contraparte bizarra da Terra é habitada por tipos estranhos, repleto de situações pitorescas e com cores em tons estranhos. Esse é o mundo de Lourenço. Não o personagem vivido por Selton Mello, mas o do Lourenço que escreveu o livro que deu origem à fita e que desenhou algumas das mais bizarras HQs da história da arte seqüencial brasileira. E, acredite, duas coisa são absolutamente essenciais ao adentrar a uma sala que esteja exibindo “O Cheiro do Ralo”: um ótimo senso de humor e uma cabeça muito aberta. Não espere humor rasteiro ou pastelão, mas algo voltado para uma crítica da própria superficialidade e das manias humanas.

O texto, adaptado por Marçal Aquino (do fenomenal “O Invasor”), nos apresenta a Lourenço (Selton Mello), um dono de um antiquário que compra os objetos de seus clientes a preço de banana, se aproveitando de seus apertos financeiros. Por conta da natureza vil desse comércio, ele foi aos poucos suprimindo qualquer noção de identificação com aquelas pessoas, enxergando-as como coisas. Para Lourenço, aquele indivíduo na frente dele, tentando lhe vender algo desesperadamente, não é uma pessoa, mas um ser desprovido de humanidade, indo desde O Cara do Violino até O Amarelão, sempre referindo-se a uma característica, nunca ao ser humano. Cada vez mais frio, ele só volta a encontrar algo parecido com afeto ao conhecer a atendente da lanchonete onde vai almoçar.

Segundo Lourenço, ela tem um nome impronunciável, uma mistura dos nomes do pai e da mãe da moça com o de algum artista famoso – mas ele se vê fascinando pela beleza anatômica de uma determinada região do corpo da moça, a qual ele passa, em seus pensamentos, a se referir como A Bunda. Enquanto isso, ele passa a sentir asco do fétido odor proveniente do ralo em seu escritório e, após destratar um cliente, este começa a se perguntar se “o cheiro do ralo” não vem dele mesmo e começa a pensar coisas absurdas como dizer que aquele ralo talvez seja um buraco para o inferno.

Mesmo o mais genial dos textos pode se perder caso não possua o ator adequado para aquelas falas, que possua o tipo de interpretação correto para aquela situação descrita no roteiro. E se tratando de algo adaptado de uma obra de Mutarelli, a situação se torna ainda mais complicada. Felizmente, o filme conta com um elenco impecável, capitaneado pelo genial Selton Mello. Ele consegue transformar Lourenço em uma figura quase real, dando àqueles diálogos rápidos a entonação e o sotaque corretos. A postura ambígüa de seu personagem quanto aos sentimentos que sente em relação A Bunda, a sensação afrodisíaca e quase megalomaníaca que ele sente ao se encontrar naquela pequena situação de poder perante os fregueses, a carência que desperta em seu coração (note o desejo dele de “montar” um pai para si) e a quase insanidade a qual ele é levado pelas situações e pelo “cheiro” são colocadas em cena pelo ator de maneira incrível.

Já a musa de nosso protagonista é interpretada por Paula Braun. Inegavelmente linda, ela confere um quê de ingenuidade a personagem que realmente se sente atraída por Lourenço por reconhecer nele uma fagulha de algo que transborda nela, que é carência. Sílvia Lourenço, de “Contra Todos”, vive a esquálida A Viciada. No início, a atriz dá um certo ar inofensivo à sua personagem que desaparece no decorrer da projeção (note também que ocorre uma progressão dos tremores da moça). O próprio Mutarelli também tem um papel de destaque no filme como o segurança canastrão da loja de seu personagem homônimo. Ele e Selton Mello protagonizam uma das cenas mais interessantes da fita, na qual discutem sobre a importância da humanidade para o mundo e a serventia do lixo. Num papel um pouco menos importante está Fabiana Gugli, vivendo a noiva de Lourenço. Apesar de quase passar do ponto em algumas cenas, ela é um ótimo contraponto à frieza do personagem de Mello nas cenas em que estão juntos, com destaque para a do jantar.

Heitor Dhalia comprova que o sucesso que havia alcançado por seu trabalho em “Nina” não por acaso. Um excelente diretor de atores, ele extrai até daqueles intérpretes que têm um tempo curtíssimo na tela uma impressão marcante. Dando provas de seu apurado senso visual, ele enquadra seus personagens dos mais diversos e estilizados ângulos, conferido uma identidade única a cada cena. Nesse quesito, Dhalia é ajudado pela fotografia de José Roberto Eliezer (com quem trabalhou em “Nina”), que dá às cores do filme um padrão familiar e, ao mesmo tempo, estranho.

O visual dos poucos ambientes do filme (a lanchonete, o hall da loja, o escritório, o famigerado banheirinho e o caminho para a loja) foram brilhantemente montados por Guta Carvalho. Repletos dos itens comprados por Lourenço e dotados de características kafkanianas (principalmente o escritório), todos os objetos de cena interagem de maneira perfeita com o estilo de filmagem e a fotografia do filme. Além disso, não posso deixar de falar do trabalho da figurinista Patrícia Zuffa, que dá a combinação certa de roupas para todos os personagens em cada cena do filme (mais uma vez, com atenção especial n’A Viciada). Já a trilha sonora de Apollo Nove é a cereja do bolo “cool” da fita, não deixando nada a desejar a das películas dirigidas por Quentin Tarantino.

Lidando com temas como obsessão, carência e desejos reprimidos de uma maneira absurdamente louca e efetiva e fazendo várias referências à cultura pop, “O Cheiro do Ralo” é um dos melhores filmes nacionais desde a chamada “retomada” da produção cinematográfica brasileira.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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