Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 11 de junho de 2007

Não Por Acaso

"Não por Acaso" se utiliza de pessoas cujas rotinas se baseiam em controle e precisão para provar que tais coisas inexistem na vida. Ao colocar tais indivíduos em situações imprevisíveis, esta brilhante produção nacional nos mostra o quão inútil é o esforço de tentar represar as mudanças que o destino nos reserva.

Philippe Barcinski. Lembrem-se bem deste nome. Com este "Não Por Acaso", seu primeiro longa-metragem, o diretor realizou um filme capaz deixar muito cineasta veterano com inveja. Com dois curtas premiados nas costas, ele surge com força no mundo do cinema comercial, mas sem deixar que o excesso de recursos ou os produtores de peso (como a Globo Filmes) o ofusquem, realizando um filme autoral e visualmente ousado (não confundir com "chocante", adjetivo que já virou lugar-comum nas produções nacionais). Fugindo dos estereótipos do nosso cinema de massa, a pelicula lida, de maneira franca, com temas complexos, tais como o medo de mudanças e a paternidade. O cineasta foge do óbvio, aliando sua perspicácia visual a um roteiro inteligente e coeso, escrito a seis mãos pelo próprio Barcinski, sua esposa, Fabiana Werneck Barcinski e Eugênio Puppo. Junte isso a um elenco inspirado e temos uma obra que alcança um resultado que supera quaisquer expectativas.

Em suas tramas paralelas, o filme mostra as histórias de alguns residentes de São Paulo. Ênio é um engenheiro de trânsito que ainda nutre sentimentos por Mônica, sua ex-mulher. Esta tenta reuní-lo com Bia, sua filha biológica que acabara de descobrir que o homem com quem sua mãe se casara não era seu verdadeiro pai. Já Pedro é um marceneiro especializado em construir mesas de sinuca e um hábil jogador do esporte. Ele é feliz em seu trabalho e em seu relacionamento com Teresa, jovem de família rica que acabara de se mudar para a humilde casa do namorado, após alugar seu luxuoso apartamento para Lúcia, uma estressada mulher de negócios. As vidas destas pessoas vão se interligar e mudar após um trágico acidente. Sentimentos, perdas e oportunidades de redenção aparecem na vida dos personagens. A metáfora com as profissões dos protagonistas é clara. Pedro e Ênio, cada um em sua ofício, contavam com a precisão e o controle. Porém, como no jogo ou no trânsito, uma mera colisão altera tudo o que havia sido planejado, algo também sentido por Lúcia, graças a uma transação que dá errado. Diferentemente do que estavam acostumados – seja sentimental ou profissionalmente – a previsibilidade e a previdência, que regiam suas vidas, acabam indo por àgua abaixo com os eventos que ocorrem.

Os atores do filme, sejam eles conhecidos "globais" ou debutantes em grandes produções, realizam um trabalho não menos que soberbo. Rodrigo Santoro, recém-saído do sucesso hollywoodiano "300", encarna Pedro como alguém simples e humilde. Meticuloso no jogo, em seu trabalho e em sua vida, ele relaxa completamente ao lado daquela que ama e, após o infortúnio acidente, vê o chão se abrir debaixo de seus pés, sendo incapaz de continuar com sua vida normal. Branca Messina está absolutamente adorável como Teresa. Num dilema comum a qualquer jovem adulto, ela se sente dividida entre a ânsia de encontrar o seu próprio caminho e a necessidade de aprovação por parte dos pais, algo evidenciado por uma ótima cena que envolve a mãe da personagem. Letícia Sabatella consegue aproveitar bem seu pouco tempo de cena como Lúcia, uma mulher que, após um revés no trabalho, tenta escapar da esgotante rotina que vive. A jovem Rita Batata encanta com a sua Bia, uma adolescente em busca de sua própria origem, e que encontra em Ênio a sua resposta. O intérprete deste, aliás, é o grande destaque do filme. Leonardo Medeiros faz um trabalho soberbo no filme, mostrando todas as nuances diferentes de seu personagem. Tímido e retraído, ele encontra refúgio em seu dia-a-dia quase mecânico, impedindo que seu potencial emerja, algo que, com certeza, acabou com seu casamento. No seu crescente relacionamento com a espontânea Bia, pode estar a chave para que ele possa conseguir, enfim, viver sua vida.

Mais uma vez, louvo o trabalho de Philippe Barcinski. Além de arrancar ótimas performaces de seus atores, ele se vale de seu apurado senso visual e realiza planos-seqüências memoráveis, explorando ao máximo todas as características dos cenários, sejam estes ambientes fechados ou a imensidão urbana de São Paulo. Sem medo de inovar, Barcinski lança mão de enquadramentos dinâmicos em suas cenas, dando a cada uma delas uma peculiaridade. Cito, por exemplo, os momentos que ilustram os raciocínios de Pedro e Ênio enquanto estes trabalham em seus respectivos ofícios, que nos mostram, de maneira única, a genialidade dos personagens. Ora, alguém que consegue tornar interessante até mesmo a apresentação dos patrocinadores no início do filme (uma maçante característica de qualquer produção nacional), merece aplausos. Também estreando em um longa-metragem, o editor Marcio Canella consegue, além de dar um bom ritmo para o filme, evitar que o espectador se sinta confuso, algo habitual em produções que lidam com múltiplas tramas paralelas. A ótima fotografia de Pedro Farkas, já veterano em longas, evidencia o carinho com que fora feito este projeto, que ainda conta com uma inspiradíssima trilha sonora de Ed Cortês (que também fora resposável pelas ótimas músicas de "Abril Despedaçado").

Numa época em que filmes originais são raros, "Não Por Acaso" nos brinda com um roteiro inteligente, uma equipe técnica competente e um trabalho incrível de seus atores. O longa nos conta, de maneira brilhante, histórias de pessoas com quem podemos realmente nos relacionar, sem jamais soar pretencioso ou moralista, tornando a experiência de assisti-lo extremamente recompensadora.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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