Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 20 de junho de 2007

Carne Trêmula

O cineasta espanhol Pedro Almodóvar lança em 1997 uma de suas obras mais maduras e envolventes que constam em sua filmografia. Sabendo sempre dosar os diversos temas que trabalha, constrói uma narrativa cuja complexidade está nas sinceridades ditas e mostradas entre os relacionamentos afetuosos dos seres humanos, sem poupar os personagens de destinos que não se restringem ao heroísmo.

A trama de "Carne Trêmula" interliga a vida de cinco personagens em épocas diferentes. Começando em 1970, uma prostituta (Penélope Cruz) dá à luz, em um ônibus, Victor (Liberto Rabal), que mais tarde vê-se homem na Madri contemporânea. É através de Victor que a história se desenrola a partir do momento que se envolve em uma confusão na casa de Elena (Francesca Néri), atraindo a atenção dos policiais David (Javier Bardem) e Sancho (José Sancho). O que eles não esperavam era que um simples tiro mudaria suas vidas para sempre e seus destinos se cruzariam de novo após sete anos, com as alterações que o fato causou na vida de cada um dos envolvidos. Agora vivendo da dependência de alguém, eles tentarão resolver alguns problemas mal resolvidos, porém se encontrarão na mais profunda dificuldade de resistir aos seus sentimentos mais profundos, sempre alterados por alguma sensação íntima.

A maturidade de Almodóvar constrói um filme simples e marcante, cujos personagens são tão reais que em um momento ou outro há uma relação de identificação pessoal com quem esteja assistindo. O cineasta faz de sua narrativa uma arma que não se apieda em falar a verdade e a proporcionar acontecimentos inesperados que não causam apenas reviravoltas programadas, mas deixam o espectador ansioso para o que vai acontecer. Por mais que os acontecimentos não sejam tão alarmantes, as estratégias do espanhol em justificar as paranóias de seus personagens e o porquê de seus desfechos são bem utilizadas e dão ritmo ao filme. É interessante observar que Almodóvar usa em sua história elementos típicos entre relacionamentos humanos, como amor, paixão, obsessão, medo, ciúmes, etc., e todos são bem trabalhados em suas vertentes, sem causar danos à qualidade da película. Pelo contrário, a facilidade com que o realizador trabalha cada aspecto na narrativa vai fluindo aos poucos e um realismo pessoal vai se desenvolvendo e cativando o público. Os diálogos fortes e marcantes rasgam a hipocrisia social onde os sentimentos estão instaurados e rendem cenas belíssimas que não vale a pena citar para que nenhum detalhe mais peculiar seja revelado e perca a graça.

Ao assumir a câmera, Almodóvar continua mostrando sua fotografia avassaladora de encher os olhos. Seu vermelho constante e o figurino exemplar causam um forte impacto que se harmoniza com as situações que se desenrolam no decorrer da trama. Nenhum movimento de câmera foi aleatoriamente pensado e todos surtem os efeitos corretos. A cena inicial com o parto de Penélope Cruz dentro de um ônibus é um dos recursos estéticos mais marcantes da película. Enquanto o parto acontece, Almodóvar roda um plano aberto, utilizando somente o áudio para causar impacto, enquanto a câmera vai se aproximando aos poucos dos personagens. Ao finalizar a ação, o toque de originalidade é confirmado e logo nos minutos iniciais já movimenta a atenção do espectador. Após isso, a evolução da personalidade de cada ator vai dando espaço a um enredo que sabe muito bem como trabalhar as relações dos cinco protagonistas, sem medo de julgá-los e mostrar o quanto as nossas vidas estão expostas a conseqüências irremediáveis. O cineasta insiste em mostrar a dor, a confusão e a diferença dos seus personagens. Esta última comprovada com os planos alternados de Victor e David; um jovem cheio de vitalidade, e outro entregue a sua vida esportista em um time de basquete para deficientes físicos.

Sempre impondo sua visão feminista, o cineasta também faz das mulheres referências não só das mães de família perfeitas para qualquer homem, usando-as como porta-vozes de insatisfação sentimental e até sexual. Parece que, a cada segundo de ousadia que elas vivem, elas sugam algo que faltava em suas vidas cotidianas. Não que justifique o adultério ou a violência, mas mostra a superficialidade de alguns relacionamentos e a relação de dependência que nem sempre é tão dependente quanto aparenta ser. Como se não bastasse, incentiva a demonstrar insatisfação e prova que qualquer um é capaz de qualquer ato para buscar a felicidade. Tudo isso misturado a uma trilha sonora que conduz e se mistura com os momentos e as atuações de grande porte. O destaque vai para Javier Bardem, que não só mostra sua versatilidade ao encarar um personagem difícil, como convence com seu jeito de ser, demonstrando a culpa que sente por ser deficiente e não satisfazer inteiramente sua mulher. Bardem faz de David um grito que prova não só a vitalidade de alguém em tais condições, mas também o peso que é lidar com isso. Francesca Néri mostra suas diversas facetas ao dar vida a Elena. Sua sinceridade "ofensiva" é um ponto chave para o desenvolvimento do personagem. Liberto Rabal, Ângela Molina e José Sancho também contribuem para fechar a trama com eficácia, mostrando que os seres humanos são tão frágeis, mas tão fortes ao mesmo tempo.

Consolidando sua competência como cineasta, Almodóvar traz em "Carne Trêmula" um ensaio sobre o relacionamento humano e as conseqüências de simples fatos para a vida de várias pessoas. Se me permitem o paralelo, a teoria do caos é a mais apropriada para a trama, principalmente para os fatos que surpreendem e dão fim à película. Enquanto os créditos sobem, é impossível não refletir sobre quais as nossas mais profundas intenções e sobre tudo que modela nossa identidade. Almodóvar mostra que muitas vezes somos hipócritas com nós mesmos e as ambições que isso gera podem causar dano não só para o próximo, como para nós mesmos. Um filme profundamente poético e belo de se assistir que foge dos clichês e mostra um Almodóvar determinado em contar histórias do seu jeito mais particular.

Diego Benevides
@DiegoBenevides

Compartilhe

Saiba mais sobre