Uma das melhores e mais fiéis adaptações de HQ's de todos os tempos, "Homem-Aranha" é simplesmente perfeito quando foca em Peter Parker, mas falha um pouco em transformar o cabeça-de-teia e sua nêmesis numa figura tão interessante quanto seus alter-egos. Apesar desse leve escorregão, o filme de Sam Raimi deve ser louvado por suas virtudes, não julgado por um mero detalhe.
Todos os (poucos) cineastas que podem se gabar de conseguirem fazer uma ótima adaptação das HQs para o cinema citam “Superman – O Filme”, de Richard Donner, como influência. Não é para menos, já que Donner praticamente inventou a roda para esse tipo de filme, que nos últimos anos tornou-se praticamente um gênero em si. E nenhum outro longa de herói emulou tão bem a proposta do citado filme de 78 quanto este “Homem-Aranha”. Sam Raimi, assim como Donner, nos conta de maneira fantasticamente realista (por mais contraditório que o termo possa parecer) a jornada de um herói, seus conflitos e tragédia. Mas Raimi tem uma vantagem: o seu protagonista. Enquanto Kal–El era “o último sobrevivente de um planeta condenado”, Peter Parker pode ser um membro da audiência, eu, você, qualquer um. Raimi se aproveita disso e consegue fazer a platéia se sentir na pele do jovem Parker, tornando cada experiência que ele têm, de admirar a garota do lado a se balançar entre prédios a 150 por hora. Essa é a grande força do filme e seu maior diferencial.
O filme começa como nas HQs, com a narração em off de Peter contando sua história. Não existe alguém mais “zoado” no colégio Midtown que Peter Parker (Tobey Maguire). Órfão e criado pelo seu carinhoso casal de tios Ben (Cliff Robertson) e May (Rosemary Harris), ele é altamente inteligente, mas não possui nenhum traquejo social (talvez até por conta disso), e completamente apaixonado – como todo nerd que se preze – por uma garota ruiva e além de suas possibilidades, a popular aspirante a atriz Mary Jane Watson (Kirsten Dunst). Seu único amigo é Harry Osborn (James Franco) que, por conta da riqueza de seu pai, é tão deslocado no colégio quanto ele. Um dia, durante uma excursão para o laboratório da Universidade de Nova York, Peter é mordido por uma aranha geneticamente modificada. Tal mordida causa em Peter, durante a noite, uma mutação em seu código genético, lhe conferindo todas as habilidades que fizeram daquela aranha transgênica especial (força, agilidade, a capacidade de fiar teias e o visualmente interessante “sentido aranha”). Paralelamente, acompanhamos o pai de Harry, o industrial Norman Osborn (Willem Dafoe), tentando manter as verbas do governo num de seus projetos, o soro de desenvolvimento humano e seu desespero com o curtíssimo prazo que ele recebe para que termine tal soro. Sem saída, Osborn resolve testar o soro em si mesmo, apesar dos alertas de seu parceiro, o Dr. Mendel Stromm (Ron Perkins), sobre os perigos de efeitos colaterais, principalmente insanidade. O soro funciona, mas Norman acaba desenvolvendo uma outra personalidade, totalmente descontrolada, que mata o Dr. Stromm e rouba um planador militar da instalação de pesquisa.
Ao acordar no dia seguinte, Peter nota, com estranheza, as mudanças mais aparentes em seu corpo. Antes míope, sua visão agora é perfeita. O súbito desenvolvimento muscular. Durante o dia, Peter descobre suas outras habilidades, em cenas surpreendentes (e, em sua maioria, hilárias). Durante a noite, enquanto tirava o lixo, ele acaba por escutar uma discussão na casa de Mary Jane e aí vem sua primeira conversa de verdade com ela e faíscas voam. Para impressionar a garota, ele resolve utilizar seus poderes numa competição de luta livre e conseguir dinheiro para comprar um carro. Preocupado com o estranho comportamento do sobrinho, Ben resolve ter uma conversa com ele no dia da luta, quando Peter finge ir para a biblioteca. Como todo adolescente normal, Peter discute feio com seu tio enquanto ele tenta lhe passar a lição de que “com grandes poderes, vem grandes responsabilidades”. Usando uma fantasia ridícula, Peter é batizado de “Homem-Aranha” pelo locutor do evento, vivido pelo ator-fetiche de Sam Raimi, Bruce Campbell, e vence o campeão local. Porém, quando o gerente do local se recusa a pagar o prêmio, Peter deixa escapar um bandido que roubou a arrecadação do dia. Para o horror do nosso protagonista, o mesmo assaltante mata Ben durante sua fuga.
Enquanto Peter aprende a duras penas que seus poderes devem ser usados para o bem geral, o lado maligno de Osborn utiliza seus dons para beneficiar a si mesmo, acabando com tudo que possa ficar no caminho. Agora na Universidade e dividindo um apartamento com Harry no centro de Nova York, Peter asume o manto heróico do Homem-Aranha, o que lhe colocará em conflito direto com o alter-ego do pai de seu amigo, chamado popularmente pela alcunha de Duende Verde, enquanto tenta lidar com o romance de Harry com Mary Jane, seu recém-arrumado emprego como fotógrafo freelancer do Clarim Diário, trabalhando para o impagável J. Jonah Jameson (J.K. Simmons) e com a faculdade ao mesmo tempo.
O filme se destaca pela humanidade e pelos conflitos inerentes a cada um dos personagens e pela abordagem psicológica desses indivíduos super-poderosos. Peter / Homem-Aranha é abnegado e está pronto a sacrificar tudo pelo bem comum. Ele é pura responsabilidade, um arquétipo de superego. Já Norman Osborn / Duende Verde é o completo oposto. Antes um homem decente e um pai que, embora ausente, amava seu filho, por conta do soro, seu lado mais egoísta e megalomaníaco se descontrolou, tornando-se a encarnação perfeita do ID. Os personagens coadjuvantes também vivem conflitos muito interesantes. Harry tenta conquistar o respeito do pai, que, apesar de amá-lo, vê-se mais refletido em Peter e, talvez inconscientemente, tenta se vingar com seu relacionamento com Mary Jane. Esta, por sua vez, veio de um lar triste e tenta compensar com uma fachada alegre. Até J.J. Jameson tem sua cota de contradição, com toda sua pose de sovina e histérico, ele é um homem íntegro e um jornalista ético (basta notar a cena onde ele é ameaçado pelo Duende).
Tais confiltos de personalidade são tratados com muita leveza, graças às ótimas atuações do elenco. Tobey Maguire se sai muito bem com o turbilhão de emoções que Peter Parker sofre durante o filme, tornando seu personagem bastante crível, o que é essencial para que o filme funcione. Kirsten Dunst está adorável no papel de Mary Jane, fazendo com que a audiência se apaixone por esta versão da personagem, bastante modificada em relação à original. Willem Dafoe traz um “quê” teatral para seu Norman Osborn, colocando o tom trágico no ponto certo para o louco empresário. James Franco dá o tom certo para Harry, que promete trilhar um caminho sobrio nas continuações da franquia. J.K. Simmons rouba o filme todas as (infelizmente poucas) vezes que J.J. Jameson aparece em cena, simplesmente hilário. A curta e marcante participação de Cliff Robertson faz com que a audiência entenda a perda que nosso herói sofre em relação ao seu tio. Rosemary Harris comove como May Parker, a figura materna de Peter.
Já a equipe técnica deu um show. Sam Raimi entende que quadrinhos e cinema são linguagens completamente diferentes e soube traduzir para as telas (traduzir, não transpor) toda a emoção das páginas duma HQ do herói para a película. Seus enquadramentos são sempre perfeitos e ele lida com os atores de uma maneira fantástica. A ótima montagem de Arthur Coburn e Bob Murawski, que já haviam trabalhado com Raimi em projetos anteriores, impõe um ótimo ritmo ao filme, nunca deixando-o esfriar. O clima de quadrinhos é reforçado pela brilhante (em todos os sentidos) fotografia de Don Burgess. Os efeitos visuais, apesar de artificiais em alguns momentos (principalmente antes de Peter vestir seu uniforme definitivo), proporcionam momentos de tirar o fôlego quando o Aranha se balaça em altíssima velocidade pelos prédios de Nova York. Impossível deixar de citar o ótimo trabalho da equipe de direção de arte chefiada por Stella Vaccaro e Tony Fanning, além dos belos sets de Karen O’Hara. Já os figurinos de James Acheson (que fez um ótimo trabalho em “Brazil” de Terry Gilliam) não merecem tantos elogios. Se, por um lado, as roupas “civis” dos personagens merecem elogios por transparecerem as personalidades e condições financeiras de cada um, ele cometeu, apesar da louvável fidelidade com que reproduziu o uniforme do herói aracnídeo, uma falha relativamente grave em relação aos uniformes do Aranha e do Duende, que comento mais abaixo.
Para não dizer que tudo são flores, o Homem-Aranha nunca consegue ser tão interessante quanto Peter Parker, assim como o Duende Verde não nos causa tantas reações quanto Norman Osborn. Mas não são a mesma pessoa? Alto lá! Voltemos a “Superman – O Filme”. Apesar de sabermos que Clark Kent / Super-Homem eram uma pessoa só, o ótimo roteiro e a interpretação de Christopher Reeve nos faziam ver duas pessoas completamente distintas, mas igualmente interessantes: o tímido e desajeitado Clark e o imponente Homem-de-Aço. Aqui, até por falta de tempo de tela e de bons diálogos (e por conta das engessadas máscaras que nos impede de vermos suas reações, algo bem mais grave no caso do nosso protagonista que, aparentemente, ficou com a mandíbula imobilizada), não nos aproximamos tanto do Aranha e do Duende quanto de seus alter-egos. Ao contrário dos quadrinhos, onde podemos ver as reações de ambos através de suas máscaras, isso não pode ser aplicado no cinema. Pior: enquanto nas HQs Peter se solta quando coloca a máscara, contando piadas infâmes frente ao perigo quando aje como Aranha, isso praticamente inexiste aqui (a única – e ótima – exceção é durante a exibição de luta livre), com o herói ficando praticamente mudo quando em ação. Esta é o único “senão” de um ótimo, divertido e emocionante filme, que deu origem a uma das melhores (e mais rentáveis) franquias da história do cinema.