Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 31 de janeiro de 2007

Pecados Íntimos

Pecados. Atire a primeira pedra quem nunca cometeu um. E do tipo íntimo, aí que pedras serão jogadas. O filme em questão trabalha de forma curiosa os supostos pecados íntimos que cometemos. Com Kate Winslet provando ser dona de uma beleza que dispensa superproduções e de um talento bruto, Todd Field mostra porquê "Pecados Íntimos" recebeu tantas cotações nos festivais de cinema.

OBS: A crítica abaixo pode conter alguns spoilers. Por isso, se não deseja saber muitas informações importantes para o desenvolvimento do filme antes de ir ao cinema, procure ler este texto após ter assistido ao longa-metragem em questão.

3 indicações ao Oscar. 3 indicações ao Globo de Ouro. 1 indicação no British Academy of Film and Television Arts. A maioria das indicações valoriza as atuações do filme, especialmente a de Kate Winslet, atriz que traz em sua filmografia filmes notórios, como "Brilho Eterno de uma Mente sem Lembrança" e "A Vida de David Gale".

Nos primeiros momentos, fiquei confusa. O diretor usou de um narrador para apresentar alguns personagens, um narrador que me lembrou o estilo do seriado "Desperate Housewives". Além disso, até os primeiros momentos eu não sabia exatamente qual o tom que seria dado à história: drama, comédia, romance…

O filme conta a história de vários personagens, basicamente jovens casados, cujas vidas se entrelaçam nos playgrounds e esquinas de uma pequena cidade, aparentemente pacata, mas que pode ser supreendentemente intrigante. Todavia, a história centra-se em um casal anômalo: Sarah Pierce (Kate Winslet) e Brad Adamson (Patrick Wilson, o Rauol de "O Fantasma da Ópera"). Sarah vive um casamento infeliz. O marido, Richard Pierce (Gregg Edelman), marketeiro de sucesso, abusa da sua paciência com o seu descaso em relação aos assuntos familiares, principalmente com a filha Lucy, e particulares, como o seu pequeno vício em pornografia na Internet. Brad tem situação parecida. Ofuscado pelo sucesso da mulher, ou melhor, pelo seu próprio fracasso na profissão, Brad é o pai exemplar que assume o papel também de mãe enquanto cuida do filho Aaron até sua esposa, Kathy (Jennifer Conelly, de "Réquiem para um Sonho") chegar em casa. Ambos vivem uma rotina inquietante, até o dia em que se encontram num playground da vizinhança. Por uma jogada do destino, os dois passam a compartilhar da rotina de pais juntos e um envolvimento, que nunca ensaiou ser apenas amizade, surge. E vale ressaltar os dois filhotes desses casamentos desbotados: Lucy e Aaron.

Em paralelo, aliás, nem tão paralelo assim, outros personagens desenvolvem seus dramas. Larry Hedges (Noah Emmerich, de "Celular – Um Grito de Socorro") é um ex-policial afastado por justa causa que se ocupa com tarefas do bairro. A principal delas é atormentar o ex-presidiário Ronnie McGorvery (Jackie Earle Haley), preso por abuso infantil e solto recentemente. Ronnie, por sua vez, mora com sua mãe, May McGorvery (Phyllis Somerville), uma senhora dedicada ao filho que luta por inclui-lo de volta no meio social. Ainda temos as mulheres casadas, supostas mães ideais e controladas, com toda a sua hipocrisia e irritação com a atitude alheia.

Aparentemente, o filme não traz nenhum tema extraordinário. Pelo contrário, são situações bem comuns e fáceis de serem assimiladas por nós. Ok, a jogada do ex-presidiário não é tão cotidiana, mas nos dias de hoje, os criminosos andam muito mais desapercebidos. Acontece que, essa semelhança com a realidade é a grande jóia do filme. Ele não busca a perfeição de ninguém, nem constrói heróis. Pelo contrário, Kate Winslet aparece em Sarah com uma beleza insegura e natural, fora do convencional. Sem maquiagem, com inquietações e impulsos, e um estilo maternal longe de ser dito adequado. Brad, o típico "rei do baile", tem uma posição secundária em casa, e mesmo tendo uma vida aparentemente invejável, ele não se satisfaz. Mesmo com uma esposa linda e atraente, que cuida dos assuntos financeiros da casa e subjulga seu papel de mãe deixando para ele a convivência com o filho e os afazeres domésticos, Brad anseia por algo mais.

Ambos procuram por uma válvula de escape, um tempero novo nessa vida enfadonha e suburbana, e juntos passam a compartilhar dessa rotina, sem ao certo saberem o que querem ou quem são de verdade. Enquanto Sarah transborda de emoções e impulsos até imaturos, ele extravasa sua energia em jogos juvenis e programas que o valorizem. No final das contas, o que os dois procuravam estava bem debaixo dos seus narizes. Só não estavam sendo colocados no devido lugar na prateleira de valores. E pensando bem, é disso que o filme trata: as inquietações típicas de cada pessoa, que nos impulsionam a agir, e conseqüentemente, afetamos a vida daqueles ao nosso redor. São os nossos pecados íntimos. Somos pequenas crianças ansiosas que erramos tentando acertar.

Lucy, a filha de Sarah, passa por abusada no começo do filme. Na verdade, ela é apenas uma criança que sente falta do colo da mãe, que sofre por perceber a insatisfação daquela que ela mais ama. Larry busca uma aceitação qualquer, fugindo do tormento de seu passado, e acaba por descontar em Ronnie sua frustração. Talvez ele encontre uma semelhança em Ronnie que para ele é inaceitável. Ele castiga Ronnie como se estivesse castigando o seu lado errante. E no final das contas, todos os dois sofrem com seus erros e buscam uma convivência menos dolorosa a cada dia.

Enquanto às mulheres casadas, responsáveis pelas fofocas diárias no playground, afastam e criticam impiedosamente tudo e toda pessoa que chegue perto de desmascará-las ou chegue perto de se libertar da vida medíocre e acomodada. Justamente por isso Madame Bovary é tão apedrejada, sutilmente citada durante o filme. Não é a questão de ser conservadora e não ultrapassar limites. Mas a busca pela possibilidade de uma vida melhor. É o que todos fazem, consciente ou inconscientemente. E não é pecado tentar ser feliz.

Tecnicamente falando, o roteiro do filme é muito bom, redondo. Não lembro de ter notado algo de interessante na trilha sonora. Acredito que ela assumiu mais o papel de background. Mas vale diferenciar a sonoplastia, que chega a causar desespero em determinadas seqüencias no final do filme. A fotografia facilita a identificação com o tom do filme e os direcionamentos de câmeras chegam a ser bem delicados.

Pelo que pude perceber, "Pecados Íntimos" não quer ser erótico – como o pôster do filme pode insinuar -, e não procura ser perfeito. Claro que ele aborda a sensualidade, mas é algo além do sexo. É um drama sobre relacionamentos, abordando de um ponto de vista muito mais pessoal e conseqüente. Cada personagem tem uma situação, uma inquietude que, ao ser extravasada, afeta pessoas ao redor de formas diferentes, e muitas vezes, despercebidas. É um recorte de situações possíveis e naturais. Dentro da sua intenção, foi muito bem sucedido e surpreendeu com um final que mescla tensão, subjetividade e intimidade.

Maíra Suspiro
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