Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 18 de dezembro de 2006

007 – Cassino Royale (2006): James Bond mais pé no chão

Com uma tentativa de se manter ainda ativa no mercado, a franquia 007 consegue de fato recriar, e porque não se reinventar, com o seu mais novo episódio da franquia, com uma história muito boa, e atuações que com certeza irão agradar em cheio os fãs do agente secreto.

Criado em 1953 pelo escritor Ian Fleming, o agente secreto 007 se tornou conhecido primeiramente em versões literárias de bolso, durante toda a década de 50, até que, em 1962, chegou aos cinemas o primeiro filme daquela que se tornaria uma das franquias mais rentáveis de Hollywood, com a versão de “007 Contra o Satânico Dr. No”, trazendo Sean Connery no papel do agente, e que viria a se tornar um dos intérpretes mais aclamados da série. Em 44 anos de franquia cinematográfica (e mais de meio século de história literária), James Bond teve várias feições, mas todas seguiam a risca a especificação da personagem dos livros de Ian Fleming, que dizia ser “um homem alto, moreno, de olhar penetrante, viril, porte atlético e sedutor na casa dos trinta anos, apreciador de vodka-martini (batido, não mexido), exímio atirador com licença 00 para matar a serviço do governo de Sua Majestade, sempre com charme, elegância e cercado de belas mulheres”.

E é por isso uma das maiores preocupações do público apreciador das aventuras do 007: justamente a contratação do pouco conhecido Daniel Craig. A imagem criada durante toda a franquia, e principalmente na última década, com Pierce Brosnan no papel era marcada pela elegância do agente, a sua forma discreta de agir, e, em parte, ficava complicado também se imaginar o agente mais agressivo, um que realmente usasse mais os punhos, a força bruta, que era exatamente a proposta inicial da reformulação da franquia, quando se decidiu que “007 – Cassino Royale” não seria mais apenas uma continuação, mas seguindo os passos da franquia de Batman, iriam recriar todo o ambiente. Isso, claro, pelas alterações da sociedade que levaram, em parte, a quase uma intolerância ao excesso de efeitos especiais e à ação quase irreal que começava a se desenrolar nas telas mediante aos dois últimos exemplares da franquia: “O Mundo Não é o Bastante” (1999) e “Um Novo Dia para Morrer” (2002).

Mas finalmente chegou às telas a hora da verdade, hora em que o trabalho árduo de dois anos feito por Martin Campbell e a produção da MGM seria colocado à prova. E o resultado não é nada preocupante. Pelo contrário, o diretor responsável pelo ressurgimento da franquia em 1995, com “007 Contra Goldeneye”, conseguiu assumir e entender perfeitamente todas nuances do mundo criado pela franquia e pelo Ian Fleming. Dessa vez, “007 – Cassino Royale”, que agora realmente é parte da franquia oficial (Cassino Royale já havia sido encenado antes para a televisão em 1953 e em filme em 1967, mas por fora da franquia oficial), é uma das melhores adaptações da história, aliás, a primeira escrita por Ian Fleming. Nela, o agente acaba de receber a sua licença para matar, ou melhor, os dois zeros e o número sete vêm em confirmação deste ser o sétimo agente a conseguir a licença. Bom, sua primeira missão, de capturar um terrorista para interrogatório de forma a MI6 poder desestruturar a célula terrorista, acaba dando errado, e Bond resolve consertar o erro, perseguindo outro terrorista para capturar. No fim, a sua segunda tentativa acaba levando a MI6 ao terrorista Le Chiffre, que está montando um jogo particular de cartas no Cassino Royale em Montenegro, de forma a aumentar o dinheiro que recebeu de guerrilheiros para financiar o terrorismo. Como James Bond é o único agente ativo que sabe jogar, é enviado para desbancar Le Chiffre no jogo. O plano era que se Le Chiffre ficasse sem dinheiro, seus financiadores iriam matá-lo, e então a MI6 poderia dar proteção a ele em troca das informações de quem seriam os seus financiadores. E é justamente aí que o filme se desenrola.

O roteiro, claro, teve que passar por adaptações para poder se enquadrar à atualidade. As novas tecnologias e, claro, (assim como acontecido com “Rambo IV”) a adaptação do vilão, que passou da Guerra Fria para o terrorismo. E o interessante da história é que em nenhum momento o espectador consegue parar para pensar: “E se fosse o Pierce Brosnan fazendo isso?”, porque a recriação de um Bond mais durão, sujo, mais “punho” do que inteligência (não que ele seja inteligente, mas ele é mais impulsivo), é o contrário da interpretação de Brosnan, criando então uma nova identidade e personalidade que se torna muito mais aceitável na presença de Craig no filme. Bond deixa de ser o agente discreto e com classe e passa a ter defeitos, cometer erros, mostrando que Bond aprendeu a ser o agente que conhecíamos durante as suas missões. O clássico herói viril modelo de uma sociedade masculina vai por água abaixo para levar à nova sociedade (que teve seus valores alterados) alguém com defeitos e assim torná-lo mais próximo da nova geração, que será o novo público da franquia.

A decisão de recriar a franquia do “zero” afetou até mesmo a abertura do filme, que é clássica pela presença dos corpos femininos dançando na tela em estilos abstratos ou psicodélicos. Agora como 007 ainda está no começo de sua carreira como “00”, nada mais correto do que ele ser um agente solitário, mais birrento do que mulherengo, o que leva a sua contagem de conquistas anteriores de “bondgirls” quase a zero, por isso, o estilo musical de Chris Cornell vem bem à personalidade do novo 007, e claro do novo público também (fato já feito também em “O Mundo Não é o Bastante”, quando a banda de rock-grunge Garbage cantou a música tema do filme). Além da música, a abertura não possui nenhuma imagem referente ao lado feminino, a não ser a representação da rainha do jogo de cartas, que momentaneamente tem seu rosto trocado pelo da futura bondgirl do filme. Eva Green também esteve muito bem para o seu papel, mostrando estar bem a vontade na representante do tesouro britânico, Vésper Lynd.

E um pouco diferente dos últimos episódios da franquia, 007 deixa bem claro, a sua próxima continuação, assim como “Batman Begins” joga a informação do vilão ser o Coringa no próximo filme do homem-morcego, em “007 – Cassino Royale” já temos um prelúdio de quem será o próximo vilão, e, o que é melhor, tudo feito de forma sem ser forçada e, para os mais perceptivos, fica claro que o próximo filme será muito mais violento, ou pelo menos James Bond será, devido às circunstâncias do final deste 21° filme.

Aliás, ação. O que é 007 sem ação, e em “Cassino Royale”, talvez para alguns fãs das brigas, explosões e todo o resto do pacote completo, seja um filme que não tenha explorado tanto o lado ação do filme. Mas acredito que a intenção tenha sido realmente essa. A novidade de “007 – Cassino Royale” é justamente a atenção maior ao lado emotivo das personagens, e a preocupação de mostrar um lado humano de Bond ao invés de mostrar várias cenas de porrada, tiroteio, gente morrendo e carros explodindo. E acredite, isso tudo tem nesse filme, só que em uma quantidade menor.

No frigir dos ovos, 007 ganhou uma nova releitura muito mais aceitável para a nova geração que já ouviu muito falar do agente. Muito mais real, muito mais pé no chão, e, como toda história, essa precisava de um início. Mesmo que ele ainda assim não seja realmente o início.

Leonardo Heffer
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