O espião mais famoso do cinema está de volta em uma aventura que não só dá uma nova cara à franquia, como corrige todos os defeitos que fizeram dos últimos filme de 007 um show de pirotecnias. E Daniel Craig, definitivamente, calou a boca de uma multidão mostrando-se o melhor James Bond desde Sean Connery.
Os filmes de James Bond são eternos! Passam anos, passam períodos históricos, mudam atores e os filmes acompanharam muitos passos da evolução da sociedade. Por muitos anos, o foco das tramas investigativas era a Guerra Fria, porém, com o fim dela, muito tiveram que inventar para trazer problemas à Inglaterra – terroristas russos, ameaças nucleares do oriente, etc – e nesse processo, é correto dizer que a franquia perdeu sua identidade. Com o avanço dos efeitos especiais, o tom investigativo deu lugar a ação desenfreada. Fica então sempre uma dúvida: o que diabos inventar para o próximo filme do personagem? Com a franquia caindo na mesmice, os produtores tomaram uma decisão ousada: recriar a franquia do zero – algo semelhante ao que fora feito com “Batman Begins” -, desde quando James Bond sequer era um agente 00 (código para quem possui permissão para matar). A decisão de “enterrar” os eventos dos filmes anteriores teve suas contradições, mas a coisa pegou fogo mesmo quando Daniel Craig (“Nem Tudo É o Que Parece”) foi anunciado como o novo James Bond, criando uma ira dos fãs que não admitiam ver um 007 loiro e feio. O resultado: um dos melhores (se não o melhor) filme do personagem desde seu “nascimento” em “O Satânico Dr. No”, de 1962.
A 1ª missão de James Bond como agente 007 o leva a Madagascar. Sua tarefa é espionar o terrorista Mollaka, mas nem tudo sai como o planejado. Bond decide espionar por conta própria o restante da célula terrorista, o que o leva às Bahamas. O MI6 envia Bond para jogar pôquer contra Le Chiffre, o banqueiro de organizações terroristas espalhadas pelo planeta, sabendo que caso Le Chiffre perca a partida isto desmontará sua organização. Mas para esta tarefa o agente 007 terá a companhia da sedutora Vesper Lynd, enviada por M para acompanhá-lo na missão.
Deixando de lado todas aquelas pirotecnias dos filmes anteriores – convenhamos, aquele carro invisível e um James Bond que escapa de uma avalanche surfando em “007 – Um Novo Dia Para Morrer” foram fatores cruciais para a decisão de enterrar a franquia anterior -, o ponto forte de “Cassino Royale” é mesmo o roteiro, assinado por Neal Purvis e Robert Wade (a mesma dupla que estragou os dois filmes anteriores) e com uma mãozinha do ótimo Paul Haggis (responsável por nada menos que “Menina de Ouro” e “Crash”), que fizeram da 21ª aventura do espião um filme pé no chão, mas sem deixar de lado todo aquele sensacionalismo, essência dos filmes clássicos.
Antes de tudo, é bom lembrar que não se trata de um prelúdio dos filmes anteriores, e sim uma renovação, por isso explica-se muitos detalhes que se forem analisar como prelúdio seriam furos de roteiro, como: Bond receber licença para matar nos dias atuais (o que a personagem M ainda reforça ao dizer que sente saudade dos tempos de Guerra Fria), justificando todo os aparatos tecnológicos que incluem carros, computadores, etc. Além do próprio fato de a personagem M ser uma mulher (lembrando que antes dos filmes estrelados por Pierce Brosnan, M era um homem) e a ausência de personagens sempre presentes como o inventor Q. Considerando este como o primeiro filme do agente, tudo fica explicado, e abre uma leque de possibilidades para os filmes seguintes (inclusive, a aparição quase certa de Q).
O roteiro prima não só por criar uma trama consistente, com reviravoltas e que prenda o espectador do começo ao fim, de modo a não deixar a projeção cansativa um minuto sequer em longos 154 minutos, mas por buscar trazer explicações a tudo. Pela primeira vez, conhecemos quem realmente é o James Bond por trás da imagem fria e idealizada de um agente secreto: um ser humano como qualquer outro, que por ainda estar em sua primeira experiência, faz muita besteira, sofre nas mãos dos terroristas e deixa a chefe à beira dos nervos com suas inconseqüências. Além disso, o roteiro mostra em detalhes sua formação até se tornar aquele agente frio que todos conhecemos (que, posso dizer com exatidão que aquele agente que conhecemos aparece pela primeira vez na última cena de “Cassino Royale”), o porquê de ele ser um mulherengo que tem mulheres como objeto; o porquê de apesar de se relacionar com milhares de mulheres, nunca ter filhos (em uma cena, digamos, até então impensável para o quase intocável agente secreto), e até mesmo porque ele gosta de seu Martini batido, não mexido.
O mais interessante é a tridimensionalidade dada não só a Bond, mas a todos os personagens. Vesper Lynd (muito bem vivida pela cada vez mais bela Eva Green), recebe um tratamento que nenhuma Bondgirl já teve. De maneira acertada, não quiseram transformá-la numa espécie de versão masculina de 007, como fizeram com Halle Berry em “007 – Um Novo Dia Para Morrer”, ou apenas uma jovem de shortinhos curtos para o delírio masculino, como Denise Richards em “007 – O Mundo Não é o Bastante”. Vesper é sensual por natureza, uma mulher forte e sensível ao mesmo tempo e não só duela de igual para igual em termos de inteligência com Bond (como podemos conferir no “embate” de reconhecimento de ambos no trem), como seu possível envolvimento com o espião é o mais verdadeiro que já se viu na franquia. Pela primeira vez, acreditamos com convicção que o espião possa realmente sentir algo mais forte por alguém. Belíssima a cena em que ambos atordoados com o momento crítico, fazem companhia um ao outro em um chuveiro – e sem conotações sexuais.
Da mesma forma, o vilão Le Chiffre (vivido de maneira sombria por Mads Mikkelsen) se mostra bastante peculiar. Nada de vilões que são inibidos de sentir dor, orientais que fazem cirurgia plástica para parecerem estadunidenses, ou os demais vilões com planos para dominar o mundo ou fazendo ameaças nucleares. Le Chiffre é assustador pelo seu jeito de ser, mas não passa de mais um simples terroristas em busca de financiamento, manipulado por forças superiores. Sim, ele é apenas uma peça de um enorme jogo, assim como Bond, Vesper, o agente da CIA Felix Leiter (em uma rápida participação do ator Jeffrey Wright), entre outros, mostrando o tom de realismo dado ao filme.
Mas os que temiam uma brusca mudança de estilo, esperando um filme realista ao extremo, descaracterizando totalmente a série, podem ficar tranqüilos, pois todas aquelas cenas de ação de deixar o espectador de queixo no chão estão presentes, ministradas com maestria pelo diretor Martin Campbell (que retorna a série após o bom “007 Contra Goldeneye”). De início até temos uma impressão que a tal mudança estava para acontecer, com a sensacional introdução em preto-e-branco e a diferente abertura, em que pela primeira vez não é marcada por silhuetas femininas, e sim tiroteios e carteados (que são a base do longa), e ao invés de uma música-tema com vocal feminino, temos a pesada “You Know My Name” (diga-se de passagem, uma música para se ficar na cabeça por muito tempo), do vocalista da banda Audioslave, Chris Cornell .
Passados os momentos de surpresa, somos presenteados de cara com uma sensacional perseguição a pé, em que os fãs de extravagâncias ao estilo “Indiana Jones” irão delirar. E não são poucas as seqüências de ação: perseguição de carros, tiroteios, e até brigas com facas e mão livre estão presentes aos montes, para a alegria geral. Ah, e bom lembrar que intercalando com os momentos de ação, muitas são as partidas de pôquer, que para quem gosta do jogo, é uma atração a parte. Quem não conhece as regras do jogo, há de se convir que irá se perder um pouco nesses momentos, que por sinal, são decisivos.
Finalmente, Daniel Craig calou a boca de muitos que suspeitavam que ele poderia ser um bom James Bond. Ainda existe um preconceito muito grande em relação ao filme, unicamente por causa daqueles que acham difícil um homem loiro e feio substituir Pierce Brosnan à altura. Pois Craig dá uma nova essência a 007, conseguindo montar uma personalidade tão complexa, de modo que fica dificilmente imaginar Brosnan em seu lugar. O astro não só exprime sua veia dramática de maneira eficiente e possui uma presença ímpar, como pela primeira vez conhecemos 007 a fundo: um ser durão com ego sempre elevado, um humor irônico mais do que apurado, teimoso, prepotente – características que paralelamente o ajudam a ser um bom agente -, mas que ainda revela um lado sensível, sem medo de expor sentimentos. Um ótimo trabalho de “moldagem” de um personagem ainda em fase de auto-descoberta (tanto do ator para o personagem, como do próprio personagem dentro do contexto).
“007 – Cassino Royale” é um recomeço que contém todos os ingredientes para a aprovação dos fãs da série: uma história bem desenvolvida, espionagem e cenas de ação mirabolantes bem equilibradas, além de um protagonista convincente. Martin Campbell de fato prova que sabe lidar com o espião de uma maneira especial e abre um leque de possibilidades e expectativas para o próximo longa. Bond, James Bond está de volta em grande estilo!