Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 13 de novembro de 2006

Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, O

Impressiona a qualidade técnica e artística do novo longa de Cao Hamburguer, "O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias".

Um roteiro de excelente qualidade, assinado a oito mãos, conduz o espectador. Pouco a pouco, e com singular sensibilidade, somos enredados numa trama intensa, psicologicamente forte e claramente inspirada em fatos reais. Quase sem se dar conta, de repente estamos completamente envolvidos pela história do pequeno e lindo Mauro (que misto de doçura, empatia e graça tem este menino, grande descoberta da equipe de realização!).

Estamos nos anos 70. Um casal se vê obrigado a sair de BH e segue para deixar o filho aos cuidados do avô. Chegam a São Paulo, bairro do Bom Retiro. Ano de Copa do Mundo e o maior sonho do garoto é ver o Brasil tri-campeão. Os pais precisam "tirar umas férias", mas vão embora sem saber da morte do avô naquele mesmo dia, sem sequer ver o neto. Daí em diante, Mauro vê-se forçado a morar de favor com um vizinho. Os hábitos estranhos daquele senhor judeu contribuem para aumentar o sofrimento silencioso e intenso de Mauro, culminando com um tapa no rosto quando brincava de bola com um "talit" (xale de reza), sinal de "desrespeito" a um ícone religioso. Cada vez mais esmagado, o garoto vai arranjando formas de minorar suas dores (a falta de comida ou comida ruim, a ausência e nenhuma comunicação com os pais, a distância dos amigos, a falta de companhia para brincar e jogar futebol de botão, a aridez dos moradores, etc) e termina por conseguir a chave do apartamento do avô. Lá refugia-se, passa dias e noites, durante muitos meses, esperando um telefonema dos pais… Enquanto o personagem vai driblando suas incertezas e perplexidades, já estamos completamente envolvidos e solidários.

Uma das cenas mais fortes é quando, desesperado pela ausência e falta de comunicação dos pais, resolve jogar o telefone no chão e sai quebrando tudo… Outro momento de arrepiar: Mauro na varanda à espera dos pais a repetir "fusca azul, fusca azul, fusca azul" como a implorar pela aparição do carro dos pais – no vidro da varanda, o reflexo das pessoas na rua, alheias à dor de Mauro. O olhar cabisbaixo, o semblante angustiado, a intuição latente de algo muito ruim acontecendo são facetas a perpassar a incrível atuação deste garoto Michel (que diz almejar ser Diretor de Fotografia, e por certo este filme muito vai ajudar a conduzi-lo neste viés), ganhando a emoção e a sensibilidade de quem assiste a tudo com o maior interesse. Assim fiquei na platéia o tempo inteiro. E foram muitas as vezes nas quais as lágrimas quiseram me entregar… Porque tudo no filme contribui para essa atmosfera sombria de crueldade subjacente, dor inaceitável e consciência das injustiças evitáveis: desde a atuação de Michel à criação da ambiência cênica, o roteiro bem amarrado, a condução supimpa da câmera, os matizes da fotografia (nunca transmitindo alegria, nem mesmo nas cenas de futebol e da "brecha" dos garotos nas clientes da loja da mãe de Hanna), o figurino, a cenografia, a dramaturgia bem construída e interpretada com naturalidade. Ao garoto Mauro, Michel Joelsas empresta seu talento e compõe nuances sentimentais multifárias: o resultado é a completa sintonia do ator com o público. Michel aparece sempre psicologicamente abalado, mas tenta superar a dilacerante situação com o jogo de futebol que adora, a tevê, novos colegas do bairro, um certo encantamento pela balconista da lanchonete e alguns primeiros sintomas do encontro amoroso futuro com o outro sexo através de sua amiguinha de prédio, a esperta Hanna. Michel é tão cativante que dá vontade de tomar sua mão e levá-lo para casa…

Vale ressaltar: a segurança interpretativa de Michel se apóia num elenco de benfazejas presenças: o ator pernambucano Germano Haiut (de "Baile Perfumado", agora redescoberto por Cao), intérprete de Schlomo (zelador da sinagoga), é um grande trunfo. Idem a garota Daniela Piepszyk, compondo uma Hanna cheia de bossa e malícias aceitáveis. A mãe de Simone Spoladore reafirma matizes interpretativos já conhecidos dos cinéfilos; idem Caio Blat, jovem revolucionário admirador do pai de Mauro; Paulo Autran faz pequena participação como o avô; Eduardo Moreira (grupo Galpão) é Daniel Stein, o pai; Liliana Castro e Rodrigo dos Santos completam o time de atores onde todos estão muito bem.

Parabéns aos irmãos Gullane, Caio e Fabiano, por mais esta aposta, cuja produção conta ainda com Daniel Filho e Fernando Meirelles e apoio da Globo Filmes na divulgação. A fotografia de Adriano Goldman e a eficiente direção de arte de Cássio Amarante se destacam. O que é aquela irretocável reconstituição de época? Tudo bem pensado, tudo presente, detalhado, aparecendo nas horas certas – cineasta e criador da atmosfera fílmica em fina sintonia, como espelha a tela. Desde o jogo de botão (saudades dos meus irmãos colecionando tantos times…) aos carros tão marcantes como o Gordini, o Decavê e o Sinca, as roupas e objetos da época, até o edifício onde morava o avô, tudo foi engendrado para transportar a platéia aos anos 70. E para lá vamos quase sem sentir numa carona tranqüila, oportuna, a reavivar na memória fatos dolorosos dos quais nunca devemos nem podemos olvidar. Cláudio Galperin e Cao Hamburguer, de cujas mentes nasceu a história original, se aliaram a Bráulio Mantovani e Anna Muylaert (contando ainda com o auxílio luxuoso de Adriana Falcão) e criaram um dos mais contundentes roteiros da história de nosso cinema, sobretudo na abordagem delicada, afetiva e competente dessa determinada época da História Brasileira. É a primeira vez na qual vejo um filme abordar com tanta proficiência as ligações entre a fluência do futebol brasileiro na Copa de 70 e a morte brutal e sem sentido de centenas de idealistas em luta por um país onde a democracia pudesse ser parâmetro de civilidade. Saí do cinema com os olhos marejados…

Cao Hamburguer e sua competente produção foram muito além do esperado, a par de se cercarem de craques, como é o caso também de Daniel Rezende na montagem e Beto Villares na trilha (de primeira linha). É preciso ainda citar o trabalho supimpa de Laís Correa na preparação de elenco, a cenografia de Fábio Goldfarb e os figurinos de Cristina Camargo, todos contribuindo de forma decisiva para a beleza exibida na tela.

"O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias" são 103 minutos de pura emoção. Se você ainda não viu, vá ao cinema correndo! Sem dúvida, o filme de Cao Hamburguer é um dos melhores do ano.

Aurora Miranda Leão
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