Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 30 de outubro de 2006

Fica Comigo Esta Noite

Apesar de ter sido vendido erroneamente como mais uma comédia romântica banal, "Fica Comigo Esta Noite" se mostra bem mais inteligente do que aparenta. Com seu estilo propositalmente teatral, ele apresenta um grande diferencial da maioria dos filmes globais.

O que esperar de um filme nacional estrelado por atores globais que estão na moda, com a mais do que batida história da pessoa que morre e o amor pelo parceiro(a) permanece no outro lado da vida; e ainda um trailer que esboça umas piadinhas sem graça nenhuma? Certamente, mais comédia romântica descartável. Esse tema já foi abordado no cinema zilhões de vezes, citando alguns exemplos, temos o mais famoso “Ghost – Do Outro Lado da Vida”, e a recente comédia “E Se Fosse Verdade”, estrelada por Reese Whiterspoon; então, nada mais podia se esperar dessa produção. Mas, o diretor João Falcão, que já havia feito um bom trabalho em “A Máquina”, conseguiu dar toda sua particularidade para com a produção.

Na trama, Edu (Vladimir Brichta) e Laura (Alline Moraes) se conheceram ainda jovens. Casaram-se e, alguns anos mais tarde, atravessaram uma crise no casamento. Isso aconteceu na mesma época em que Edu morreu. Isso mesmo, morreu…assim, repentinamente. Mas a história deles não podia terminar desse jeito. Ele não ia deixar. Ele precisava se despedir e resolver tudo com ela. Mas como comunicar-se com ela, se nem vê-la ele conseguia? A solução era pedir ajuda a outro fantasma, o Fantasma do Coração de Pedra (Gustavo Falcão), uma assombração experiente, que não gosta de companhia, mas que tem as respostas para as dúvidas de Edu sobre esse novo mundo.

O diretor João Falcão pareceu não se importar em fazer um filme estereotipado que atingisse a massa, e sim, uma obra diferente, com diversos pontos interessantes que merecem ser analisados. Baseado em uma famosa peça escrita por Flávio de Souza e estrelada por Luiz Fernando Guimarães e Déborah Bloch, “Fica Comigo Esta Noite” é uma projeção de todas as raízes teatrais do diretor. Por isso, é normal se muitos estranharem a quase ausência de efeitos especiais para retratar o além, o curto tempo de duração – 73 minutos -, a iluminação um tanto falha da película, etc. Sem embolações e mostrando apenas o que realmente é necessário, “Fica Comigo Esta Noite” é um bem feito quase “teatro filmado”. Destaque para o visual pseudo-gótico – ainda assim, sem grande extravagâncias -, mantendo sempre um ar de mistério e densidade, remetendo-nos diretamente ap clima de morte , o qual a trama gira em torno.

Fora o interessante ponto de vista teatral de Falcão, o roteiro escrito por ele próprio é muito bem desenvolvido. Além da superfície perceptível de “comédia romântica”, estão contidos ao longo da projeção uma série de simbologias e colocações interessantes relacionadas ao Espiritismo, críticas ao fanatismo religioso, metáforas sobre a morte, etc. São muitas as cenas interessantes que abordam essas vertentes, como a hilária cena do casamento, em que Edu reluta em concordar com o padre, interpretado por Milton Gonçalves, quando este professa a frase litúrgica “até que a morte os separe”. Enquanto, na cena do velório de Edu, o personagem de Zéu Britto oferece à viúva as últimas novidades do mercado funerário já catalogadas em uma das passagens mais inteligentes do filme.

Os leitores de Allan Kardek, Bezerra de Menezes certamente irão se satisfazer com muitas abordagens sobre o espiritismo, pois essas não são jogadas em vão na trama. O papel do Fantasma do Coração de Pedra – que é um personagem criado pelo próprio Edu, para uma história em quadrinhos – também merece uma análise especializada, e qualquer detalhe que possa ser desmistificado sobre ele, estragará a graça do filme. As metáforas são muitas, mas nenhuma chega a ser mastigada ao espectador, mostrando o grande diferencial da produção com 9 a cada 10 filmes nacionais. O simples fato de apresentar narração em off de Vladimir Brichta com referências poéticas de Fernando Pessoa a Peninha, – que remete ao clássico de Machado de Assis, “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, mostra uma inteligência peculiar do roteiro de Falcão. Notem que até mesmo a imagem do céu é omitida do espectador, mostrando apenas a tela branco com a narração de Brichta ao fundo, não caindo no lugar comum, como o que fora feito na novela “A Viagem”, em que o céu era um imenso jardim (mais precisamente, um campo de golfe). No final das contas, como podemos ter uma imagem 100%¨certa de como é o céu? Todas essas dúvidas o filme aborda de uma maneira inteligente, muito simples, e sem se mostrar comprometedora com religiões.

Se por um lado, o roteiro se apresenta inteligente ao abordar com o inteligência temas diversos, o mesmo não se pode dizer do cuidado tido com as piadas. Simplesmente, não há nenhuma cena que realmente nos faça rir com vontade, e as poucas cenas cômicas são mostradas no trailer. Uma pena o filme ter sido vendido como uma comédia romântica, pois no quesito comédia, o filme é deficiente. Muito provavelmente, a grande massa, iludida pelo trailer, irá desaprovar o resultado final por esse motivo.

Infelizmente, o resultado poderia ser melhor se não fossem as descompromissadas interpretações. E em um filme que tem a proposta de manter um clima teatral, as interpretações tem um poder enorme. Vladimir Brichta e Alline Moraes, por mais que sejam dois bons jovens atores, não transmitem toda a carga emocional e o peso que seus papéis exigem. Parece que estão atuando em mais uma novela das 7, e muito provavelmente, com atores mais experientes nos seus lugares, o resultado teria sido mais satisfatório. Nem mesmo os experiente Milton Gonçalves, como o padre, e Laura Cardoso como a velha Dona Mariana, têm boas chances de expor seus talentos. O destaque mesmo, sem dúvidas, é Gustavo Falcão (filho do diretor do filme), que dá com eficácia todo o ar de mistério, unido a comicidade e sentimentalismo de Fantasma do Coração de Pedra.

Se você procura mais uma comédia romântica, bem típica dos estúdios de Roberto Marinho, com tema batido, procurando dar alguns risinhos e simpatizar com os protagonistas, passe longe de “Fica Comigo Esta Noite”. Por mais que aparente tudo isso, é um filme que se mostra bem mais inteligente do que a maioria dos filmes do gênero, e é um prato cheio para quem curte uma série de analogias, questionamentos diversos sobre religião, etc. Pode não provocar muitos risos, mas faz com que aquele espectador mais atencioso, repare em detalhes maquiados, que merecem reflexão. E é aí, onde a produção mostra o seu valor.

Thiago Sampaio
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