Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 16 de outubro de 2006

Homem Urso, O

O mais recente projeto do cineasta alemão Werner Herzog chega para mostrar várias dimensões da relação homem e natureza, além de fazer uma análise crítica da sociedade americana, mas acaba deslizando em alguns pontos que não se encaixaram muito bem neste documentário imperdível.

Sempre marcado por sua excentricidade, Herzog achou um dos melhores objetos para construir um documentário. "O Homem Urso" centra-se na vida de Timothy Treadwell, um ator frustrado e ex-viciado em drogas que, durante treze anos, viajou para o Alasca para viver ao lado de ursos pardos, estudando-os, protegendo-os e buscando uma conscientização da sociedade em termos de preservação da natureza. Mesmo sabendo dos riscos que corria, Treadwell não hesitava em estar cada vez mais próximo dos seus animais, que mais pareciam cachorrinhos domesticados, aparentemente inocentes, até que, em 2003, o homem urso e sua namorada são violentamente atacados por um dos ursos com que viviam. Herzog faz uma análise da vida do ativista como humano e como animal, procurando desvendar os verdadeiros motivos para sua aproximação e vai, por meio de mais de cem horas de filme que Treadwell deixou como registro de suas visitas e através de entrevistas com familiares e amigos, traçando uma personalidade do seu objeto de estudo, além de fazer uma análise crítica da sociedade predadora.

Nada mais atraente em um documentário do que expandir a linha das entrevistas fechadas acerca de um determinado objeto. Herzog teve como álibi principal para construir seu documentário os vídeos e manuscritos de Timothy Treadwell para inserir no seu trabalho mais realismo do que poderia ter. Tim não foi apenas um personagem trabalhado, mas ele pôde, de certa forma, participar do processo narrativo que o documentário se enquadra. Dispondo de mais de cem horas de imagens filmadas pelo próprio homem urso, Herzog conseguiu lidar com as principais idéias e teorias que pudessem traçar uma personalidade mais do que exótica de Tim, intercalando com depoimentos de pessoas que estavam ligadas a ele de alguma forma. Sem se preocupar com uma ordem cronológica do começo do projeto de Tim até sua morte, Herzog mostra uma peculiaridade exemplar ao não linearizar a vida de seu personagem, podendo, assim, abordar com mais clareza suas ações pré e pós falecimento. À medida que um estudo começa a ser feito sobre o protagonista, o diretor juntamente com a platéia vai descobrindo mais sobre o que levava o ativista a estar todos os verões protegendo aqueles animais que, mesmo estando em uma reserva, ainda não tinham proteção o suficiente, como achava Tim. Uma mistura de loucura e obsessão. Herzog vai analisando seus registros de viagem e, juntamente com os depoimentos, a história daquele bravo homem vai sendo revelada e fluindo de uma maneira que um certo intimismo com o público fica inevitável de acontecer, envolvendo-o até os últimos momentos de projeção.

É bastante interessante analisar o amor que Treadwell tinha pelos ursos ao ponto de querer ser um deles. Desde sempre ele sabia do risco que corria e afirmava que morreria por aqueles animais se fosse preciso e que jamais pararia de defendê-los e de conscientizar a população mundial da preservação da natureza, dando até palestras gratuitas para crianças sobre a relação dos homens com os animais. A princípio, parece que todo esse amor é a razão principal de sua dedicação, mas vamos conhecendo com o decorrer do documentário que Treadwell se refugiava de um mundo que ele mesmo reprovava e que não conseguia aceitar que participava dele. Claro, além da visão ambientalista, vamos descobrindo que os ursos foram também uma terapia que o fez abandonar o álcool e as drogas em busca de formas novas e livres de espantar seus demônios. Em um momento do documentário, o próprio personagem diz que ali ele se sentia bem e livre, assim como os ursos. O grande questionamento é se realmente aqueles animais precisavam de sua proteção. Treadwell violou leis e, além de ficar conhecido por sua nobre causa, também criou inimigos como os caçadores de ursos pardos, mas será que era mesmo necessário a proteção de um simples humano? Ao analisarmos sua interação com os animais e suas constantes demonstrações de carinho e afeto para os animais, inclusive para umas raposas que Treadwell tratava como bichos de estimação, percebemos uma certa angústia no trabalho dele. Ao mesmo tempo em que ele tinha seu objetivo e fazia de tudo para registrar seus pensamentos a favor da natureza, percebemos que ele é o estranho naquele ambiente e que, mesmo com uma nobre causa, não pode ser glorificado ao máximo por ela. Até porque aqueles bichos são selvagens e, a partir do momento que tivessem contato com os humanos, vão começar a ir contra as leis naturais. Já pensou se a 'racionalidade' dos ursos estereotipem que todo humano é bonzinho como Treadwell?

Enfrentando a solidão de um universo animal, Treadwell começou a fazer da sua câmera seu principal amigo, desabafando suas vontades, desejos; brincando com as situações que passara, mostrando-se em pleno descontrole psicológico por assumir com tanta força sua missão, e isso vai dando uma seqüência interessantíssima para o longa. Chega um momento que percebemos que o objetivo do documentário não é nem santificar nem criticar a ação de Treadwell, e, sim, mover hipóteses sobre seu fascínio e levar para o mundo a história de um guerreiro que foi vítima da beleza do mundo que criou para si. Além de ativista, Treadwell conseguiu se superar como um verdadeiro cineasta. Ele captou momentos impagáveis da vida na selva que jamais outro cineasta captaria justamente por não ter rompido barreiras com o mundo animal. Suas constantes declarações de amor aos bichos o motivavam para ir em frente. Sua paciência rendeu momentos impagáveis que realmente demonstravam que a presença dele era preciso ali, mas não como um salvador dos ursos pardos, que chega até a se auto-endeusar por se achar mais nobre do que os outros. A perspectiva de vida de Treadwell foi intensamente reforçada pelos comentários de pessoas importantes em sua vida. Desde o motorista do helicóptero que o levava todos os verões para o Alasca até seus pais, que sem um conhecimento profundo sobre o filho passam frieza ao declarar que ele saíra de casa ainda jovem para se aventurar no mundo e acabou conhecendo caminhos tortuosos, e acaba sendo um dos pontos fundamentais da projeção, por mais que não tenha sido explorada da forma correta.

Herzog absorve depoimentos importantíssimos que permitiram o sucesso total do seu documentário. Em termos deste gênero cinematográfico, Herzog só peca em alguns cortes grosseiros que são feitos no decorrer da película, o que realmente é uma pena, já que sua montagem está impecável. Outro ponto que, particularmente, me desagradou foi o envolvimento que Herzog teve na história. Sendo o interlocutor dos fatos, talvez as opiniões do cineasta poderiam ter sido poupadas, continuando somente a narração que vinha sendo feita. A partir do momento que Herzog se intimiza demais com seu objeto, perde credibilidade e dá um caráter superficial e descartável à sua participação, principalmente nos momentos finais onde ele é mostrado ouvindo a fita onde os gritos e gemidos de Treadwell e sua namorada foram registrados no momento do ataque do urso que os matariam. A sensibilidade que aquele momento tomou um caráter ridículo, espetacularizando demais o fato de não divulgar tais ruídos, por meio de enterrar aquele sofrimento, mas não conseguiu. Outro ponto que poderia ter sido evitado foi a extrema atuação de alguns de seus entrevistados. Caindo no conceito artificial, parece que estas pessoas haviam decorado as palavras certas para serem registradas e, ao invés de dar mais dramaticidade ao documentário, dá um show de atuação dispensável. É lamentável ver que nem tudo pôde ser aproveitado, visto que "O Homem Urso" beira a perfeição, se analisando como um todo.

Sempre argumentando e principalmente contra-argumentando as ações de Treadwell e sua obsessão pela vida selvagem juntamente com sua constante batalha contra a violência animal caracterizada por uma sociedade predadora e insensível, "O Homem Urso" faz uma análise de conjuntura pessoal e social da relação entre homens e animais e da busca de uma identidade que o personagem principal já não tinha mais. Sensibilizando a cada "eu te amo" que Treadwell falava aos seus bichos, acreditamos no amor que sentia por cada um, mas ao mesmo tempo percebíamos que não era inteiramente recíproco e que a natureza precisa fluir de acordo com as normas estabelecidas por ela. Treadwell procurou proteger, estudar e ajudar aqueles animais, e virou um símbolo por isso, mas, se estudado profundamente, podemos perceber que tudo isso era mais uma tentativa de se refugiar de um mundo onde ele não conseguiu ser feliz. E é lindo ver sua identificação com os ursos, seu amor pela raposa 'de estimação', mas saímos com alguns questionamentos pessoais de até onde ele estava certo ou se ele estava certo de algum jeito agindo assim; ou se ele era realmente o Deus que ele pregava ou se ele era o vilão da história. Um documentário eficiente que mostra além do que podemos ver entre uma relação homem-animal e que sensibiliza em suas mais singulares vertentes.

Diego Benevides
@DiegoBenevides

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