Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 09 de novembro de 2006

Lei do Desejo, A

Sempre escolhendo temas polêmicos e dando-os um tratamento peculiar, "A Lei do Desejo", sexto filme da carreira de Pedro Almodóvar, vem estabelecer as características mais marcantes das produções do cineasta que viria a se tornar um dos mais brilhantes diretores de todos os tempos.

Filmada no ano de 1987, a produção aborda o homossexualismo entre seus personagens que mantém uma relação instigante entre si. Tino (Carmen Maura) foi abusado sexualmente por seu pai quando criança, mantendo uma relação incestuosa com o mesmo, o que casou a separação de seus pais, aproveitando para fazer uma cirurgia para tornar-se mulher e virar Tina. Pablo (Eusebio Poncela), seu irmão, também homossexual, é diretor de cinema e viciado em drogas que acaba seduzindo Antonio (Antonio Banderas), um jovem ainda não assumido que passa a ter uma paixão doentia pelo cineasta. No ápice da paixão, os personagens envolvem-se em um crime que acaba atingindo suas vidas. Acima de qualquer relação entre seus personagens, o filme mostra o que o desejo e a posse podem causar dentro dos relacionamentos (ocasionais ou não).

"A Lei do Desejo" é o filme que realmente marcou o jeito almodovariano de ser. É fácil de identificar que suas tendências começaram a surgir a partir deste projeto e que vem assinando um estilo parecido desde então. Sempre escolhendo assuntos pouco comuns (ou que até já tenham virado comuns pelo constante abuso de abordagens que vêm sendo feitas ultimamente), Almodóvar aborda o homossexualismo na sua essência mais carnal e possessiva. Não que todos os homossexuais sejam assim, mas foi a vertente que o diretor escolheu para desenvolver sua história, que caberia muito bem em relacionamentos heterossexuais, coisa que até ele já investiu em outras películas como "Carne Trêmula". Em qualquer que seja o caminho que trace seu enredo, uma marca de Almodóvar é justamente a humanização de seus personagens. É incrível como ele consegue montar objetos interessantes em cena, que se relacionam entre si, aproveitando todos os ganchos possíveis e imagináveis que eles possam ter. Na trama, que já começa chocando o espectador menos preparado com suas cenas fortes que mais parecem um conto erótico sendo posto em prática, sem poupar nudez e toques sexuais, podemos perceber inclusive a facilidade com que as coisas começam a fluir na história, até ter uma junção de fatos que, quando menos esperamos, já está em seu clímax. Clímax este que recebe uma dosagem sutil de ação e desejo, de amor e ódio, de vida e morte.

É bem fácil digerir as intenções da trama, apesar do superficial trabalho espaço-temporal que o diretor evita expor durante a história. Os fatos também são muito rápidos e tudo pode ser explicado com a psicologia do amor e de seus efeitos colaterais como, no caso, é o desejo. Antonio Banderas desde jovem sempre foi muito sedutor e possuía uma presença em cena, demonstrando familiaridade com as câmeras e competência em seus papéis. Ele faz de seu personagem Antonio o resumo do que a paixão obsessiva pode causar em um relacionamento. Em alguns momentos até julgamos se aquilo era desejo e amor ou se o moço é um pouco desequilibrado. Eusebio Poncela interpreta Pablo, um cineasta promíscuo que ama, mas seu companheiro está distante e não pode lhe dar tudo o que precisa, e é mais um personagem universal, impossível de não se identificar, principalmente nos momentos em que ele assume que precisa esquecer seu amor com a distância, para que não sofra mais. Por trás do sentimentalismo, é até interessante a metalinguagem cinematográfica que Almodóvar joga nas mãos de Pablo, porém, no ritmo que a história vai se moldando mais para o lado pessoal, este recurso vai sendo abandonado, o que poderia ter comprometido mais a película, mas é facilmente descartado pela audiência, que passa a se preocupar em ter um desfecho do que em que a história vai se tornando.

Ainda com pouca experiência na época, Almodóvar já mostrava seus dons cinematográficos e, por mais velha que a película possa aparentar (nos quesitos figurino, cenário e afins), existem planos que realmente só ele consegue captar. Mesmo inovando pouco de um filme para o outro, consegue tornar isso uma característica positiva, fazendo sua marca e deixando facilmente identificável uma obra sua. Sem falar na harmonia e verdade que ele consegue extrair dos seus personagens, coisa que nem todos os diretores conseguem pôr para funcionar. Um exemplo disso é Tina, interpretada competentemente por Carmen Maura, que consegue sair dos estereótipos transexuais e compor um personagem intimamente sofrido e verdadeiro, que choca a cada pensamento, a cada palavra, fazendo-nos identificar com seus traumas amorosos.

Mesmo não sendo uma obra-prima nem a melhor de suas películas, é um marco na vida de Almodóvar, que começou a mostrar ao mundo sua competência e sensibilidade ao conduzir um drama bem construído e denso. Apesar de cair nos lugares comuns que são fáceis de comparar com as produções mais recentes, para a época em que foi lançado, "A Lei do Desejo" mostra-se um brilhante ensaio que ultrapassa a abordagem das escolhas sexuais, mostrando uma análise íntima dos relacionamentos, fazendo-nos questionar até onde podemos ir quando levados pelo amor ou por paixões casuais. Uma trama rápida e de fácil digestão que não perde o brilhantismo e a sensibilidade de Almodóvar.

Diego Benevides
@DiegoBenevides

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