Difamado por 8 a cada 10 críticos, "A Dama na Água" é o tipo de filme que, visto superficialmente, pode realmente não trazer algo de novo. Agora, visto por um olhar mais profundo, não só é um belíssimo trabalho de direção de M. Night Shyamalan, como uma história sensacional que aborda suspense e inúmeras simbologias de uma maneira ímpar. Digam o que quiserem, mas Shyamalan ainda é um gênio.
M. Night Shyamalan é um exemplo de diretor que, mesmo com poucos filmes, já é garantia de muita badalação, marketing pesados, e, porque não, desconfiança. Após dirigir em 1999 "O Sexto Sentido" – sendo logo indicado ao Oscar e dando início a uma verdadeira febre de filmes de suspense que insistiam em forçar um final surpreendente -, o diretor indiano já botava os pés no mais alto patamar do time de diretores de Hollywood. Depois de seis anos trabalhando para a Disney, Shyamalan agora muda de estúdio. Após sucessos como o próprio "O Sexto Sentido", "Sinais", e os menos apreciados "Corpo Fechado" e "A Vila", ele dirige e roteiriza o thriller fantástico "A Dama na Água" (Lady in the Water), pela Warner Bros. A Disney chegou a discutir o projeto com Shyamalan, mas um acordo não foi alcançado devido a diferenças criativas (termo amenizado, para não dizer que o estúdio achou o filme uma m****), e a Warner, que já havia o procurado anos antes, topou levar o longa paras as telas. O novo longa do indiano vem recebendo duras críticas pelo mundo, o que é uma pena, pois com "A Dama na Água", ele consegue mostrar o que sabe de melhor, intercalando mistério e fantasia. Normal o filme não ser bem aceito, pois ele é um verdadeiro tapa na cara de todos os críticos que costumam falar mal do diretor, e a consolidação de seu – tão difícil de se aceitar -talento.
Cleveland Heep (Paul Giamatti) tenta desaparecer entre as lâmpadas queimadas e os objetos quebrados do complexo de apartamentos Cove. Mas, na noite que muda irremediavelmente sua vida, Cleveland encontra outra pessoa se escondendo na rotina mundana do prédio modesto – uma jovem misteriosa chamada Story (Bryce Dallas Howard), morando entre as passagens sob a piscina do prédio. Cleveland descobre que Story é na verdade uma "narf" – um personagem como uma ninfa, de uma história infantil épica, que está sendo perseguida por criaturas malignas que querem impedir que ela faça a perigosa viagem de volta do nosso mundo para aquele de onde veio. Os poderes especiais de percepção de Story revelam os destinos dos moradores do prédio, colegas de Cleveland, que estão ligados diretamente ao dela própria, e eles devem trabalhar juntos para decifrar uma série de códigos que vão abrir o caminho rumo à liberdade.
Antes de tudo, há de afirmar que "A Dama na Água" não é um filme para qualquer um. É diferente da maioria dos filmes do diretor, e certamente não irá agradar àqueles que se limitam a avaliar seus trabalhos comparando com "O Sexto Sentido", como se ele tivesse um estilo único. À primeira vista, o longa parece ter uma história bizarra, com um roteiro superficial que dá voltas e voltas e parece apenas enrolar o espectador. Porém, os analistas mais rigorosos, certamente irão identificar os infinitos contextos subliminares, recheados de simbologias e conotações diversas – como religião, política, e óbvio, fantasia. Paradoxalmente, existe a dúvida se tais simbologias realmente eram a intenção do diretor, mas, mesmo assim, ele consegue manter um clima de mistério eletrizante, redimindo-se dos defeitos do filme anterior, "A Vila".
É um roteiro aparentemente simples, porém, tratado com um carinho impressionante, e o diretor foi mais do que feliz em seu desenvolvimento. A história chega até a parecer banal até certo momento, porém, aos poucos vai ganhando maior peso, de forma que o que parecia óbvio para o espectador, se torna um imenso e complexo jogo que nos deixa atentos e presos na poltrona a cada segundo. Bastante criativo o modo que a tal "história de ninar" se desenrola, chegando até mesmo a ficar confusa na maioria do tempo. E, felizmente, na maior parte do tempo o diretor deixou o medo apenas induzido – do contrário de "A Vila" e "Sinais", em que os monstros eram mostrados ainda com um bom tempo de filme a correr -, deixando para o espectador construir tal medo na própria cabeça, reforçando apenas com alguns sustos periódicos através de aparições relâmpagos das tão temidas criaturas do filme. Ainda, toda aquela velha lição de redenção e segundas chances – já tão abordadas em "O Sexto Sentido" e "Sinais" – estão de volta aqui, apresentadas de uma maneira bastante criativa. Interessante ver o fato de o personagem de Paul Giamatti viver amargurado por ter abandonado a família em momentos difíceis (fato que fica apenas subentendido durante toda a projeção, sem flashbacks gratutitos, acertadamente), e a chegada da Narf em sua vida serve para ele se redimir, visto que ele poderia muito bem abandoná-la assim como fizera com sua família, ao invés de ajudá-la a voltar para seu mundo.
Infelizmente, o diretor cai na própria armadilha e vacila nos momentos finais ao expôr certas criaturas que já estavam construídas nas cabeças do espectador, deixando uma sensação de decepção. Há também uns erros graves de roteiro, como por exemplo, a tão fácil aceitação dos residentes do apartamento em colaborar com Cleveland e ajudá-lo a proteger a misteriosa moça vinda do mundo fantasioso. Tudo bem que Shyamalan queria que o espírito de criança fosse renascido em cada um, mas, convenhamos, é duro de engolir que todos acreditem de imediato que uma moça veio de um mundo fantasioso e todos eles têm papel importante em sua salvação. Ainda, o processo de conhecimento de Cleveland da tal "história de ninar" se apresenta um tanto arrastado, ficando difícil não se cansar com as milhares de explicações – a contra gosto – da velha oriental, e o fato de a narf não poder falar sobre seu mundo se torna algo extremamente forçado. Mas, nada que estrague o resultado final.
É um filme que combate a todo o momento os tão tradicionais clichês e estereótipos, e ainda faz questão de satirizá-los. Logo de início, o diretor segue apresentando cada personagem da trama – no caso, os residentes do apartamento -, e num filme tradicional, muitos deles não passariam de meros figurantes. Mas ele faz questão de dar a cada um uma importância extrema para o desenrolar da trama, de modo que na ausência de um único, o desfecho seria impossível. Aliás, engano meu, pois há um que não tem tanta importância assim, e ele próprio chega a ter consciência disso em certo momento e dispara um monólogo extremamente divertido e ao mesmo tempo, sarcástico, mostrando ousadia por parte de Shyamalan. E no lugar comum é aonde o roteiro nunca cai, pois os personagens jamais chegam a ser considerados estereótipos. Afinal, em qual outro filme vocês viram um personagem que tem um braço extremamente malhado e o outro normal; uma oriental metida a rebelde; e um indiano que tem nas mãos o destino de toda uma sociedade?
O mais interessante é que o cineasta usa de seu longa como artifício para brincar com sua própria situação no mercado cinematográfico, incluindo na trama um personagem que é crítico de cinema. Numa cena interessante, alguns personagens comentam como alguém pode ser tão arrogante a ponto de julgar o trabalho de outra pessoa. De maneira inteligente, o diretor simplesmente ironiza esse fato de muitos críticos experientes dizerem que é impossível se criar coisas novas hoje nos dias atuais, e surpreende a todos com uma história cheia de reviravoltas e que dificilmente o espectador se encontra 100% ciente do que realmente está acontecendo ou está para acontecer. Os mistérios e as surpresas predominam durante toda a projeção. Talvez por isso o filme tenha sido tão criticado por onde passou, afinal, ele é uma resposta criativa àqueles críticos chatos (podem até me considerar um, mas nem por isso deixei de achar inteligente a colocação do diretor).
Quanto as interpretações, mais uma vez, o diretor achou os atores certos para os papéis certos. Paul Giamatti, apesar de aparecer sem tanto brilho como em "Sideways – Entre Umas e Outras" ou "A Luta Pela Esperança", confere ao bem intencionado Cleveland o exato ar de ternura e humildade que exige, forçando até uma gagueira cômica. Já Bryce Dallas Howard está simplesmente perfeita como Story, a narf, centro de toda a história. A filha do diretor Ron Howard, além de linda, confere à personagem o perfeito ar de fragilidade, unido a uma bela mistura de mistério e sensualidade. Shyamalan por sua vez, pela primeira vez encara um personagem importante na trama, aparecendo durante boa parte da película. Sua interpretação não pode ser considerada grande coisa, mas está bem adequada ao que modo seu papel é desenvolvido, até porque, há uma simbologia relacionada ao papel de seu personagem na trama, com a vida do próprio diretor. Egocentrismo? Talvez, mas deixemos o cara ser feliz.
Muitos andam comentando que um dos motivos da má aceitação do longa é o fato de o diretor não ter conseguido fazer um filme com uma abordagem infantil. Como o trailer indica ser "uma história de ninar", imaginam que a intenção do diretor era fazer um filme que despertasse um paralelo entre a realidade e a fantasia, algo normal no mundo de uma criança. Deixo-lhes claro uma coisa: o roteiro de "A Dama na Água" foi baseado em uma história de ninar criada por M. Night Shyamalan para seus filhos, porém, a idéia nunca foi fazer um filme voltado para crianças. Os leigos simplesmente não entenderam que a idéia era aproveitar tal história infantil e transformá-la em um filme sombrio, típico de Shyamalan. A frase do trailer "uma história de ninar por M. Night Shyamalan" foi uma bela estratégia de marketing, de modo que a tal "história de ninar" é sobreposta pelo nome diretor, que por si só, já é sinônimo de filme sombrio. Definitivamente, "A Dama na Água" é um suspense de primeira qualidade, feito para gente grande!
Posso estar defendendo em demasia o filme, porém, é de minha índole ficar do lado dos injustiçados. "A Dama na Água" é o tipo de filme peculiar, que certamente não irá agradar facilmente a todos (inclusive fervorosos críticos), seja pela temática fantasiosa, o desenvolver aparentemente monótono da trama, ou simplesmente pela pura implicância com o cineasta, que até onde sei, nunca escreveu nenhum contrato dizendo que seus filmes teriam que seguir o estilo de "O Sexto Sentido". "A Dama na Água" é um trabalho que consolida a espetacular direção de M. Night Shyamalan, que ainda sabe fazer um bom suspense como ninguém. Analisado com inteligência e uma visão bem mais profunda do que simplesmente está diante dos nossos olhos, é um prato cheio para quem aprecia simbologias aplicadas a detalhes de roteiro. E o que não faltam são metáforas sobre a condição humana, política, religião, etc. Detalhe que o final parece até ser de algum filme de arte, procurando não "mastigar" todos os eventos ocorridos durante a projeção, deixando para o espectador tais inúmeras reflexões, após a subida dos créditos. Experimentem encontrar todo o valor crítico-poético incluído no papel da "Madame Narf", do livro escrito pelo personagem de Shyamalan, na "Irmandade", etc. Certamente sua impressão sobre o longa será, no mínimo, interessante.