Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 27 de agosto de 2006

Miami Vice

Apesar de esbanjar talento ao exprimir suas já características fotografias exuberantes, e um controle admirável da câmera digital, Micheal Mann não consegue fazer de "Miami Vice" algo interessante. Apesar de denso e realista, é um filme que peca por apresentar uma narrativa demasiadamente monótona e sem criatividade.

Como dita a moda, outro famoso seriado da década retrasada ganha sua versão cinematográfica. O seriado dos anos 80, "Miami Vice", marcou época pelo seu visual Art Déco e pelos acessórios caros usados pela dupla: carros sofisticados, ternos e paletós de marca, além de luxuosas mansões e casas noturnas. A estética do seriado influenciaria mais tarde várias produções voltadas para o mundo do crime sediado em paisagens litorâneas, e agora, chegou a vez do próprio seriado ganhar uma versão moderna nos cinemas. Michael Mann, que escreveu alguns episódios e serviu como produtor executivo da série, se encarrega de trazer "Miami Vice" para os dias atuais. Mann foi relativamente bem sucedido ao transpor o visual – que alternava entre o paradisíaco e o brega – do seriado para as telas, mas, mesmo assim, o resultado final se mostra bem inferior aos seus filmes anteriores, "Fogo Contra Fogo", "O Informante" e "Colateral". A premissa é interessante, mas o problema é que o roteiro se perde ao dar muitas voltas e nunca sair da estagnação, deixando o clima monótono prevalecer durante toda a projeção.

"Miami Vice" começa quando os detetives Crockett e Tubbs descobrem que uma denúncia na "alta esfera" levou ao assassinato de seus amigos, dois agentes federais e de um informante. Destacados para o caso, a investigação dos dois detetives acaba levando-os à porta de assassinos terríveis da Irmandade Aryan e uma rede sofisticada de traficantes internacionais com proteção do primeiro escalão do crime organizado. Durante a caçada, os parceiros conhecem a bela mulher do Montoya, o chefão da Irmandade, e também responsável pelas finanças, a sino-cubana Isabella, uma mulher que manipula, lava e investe dinheiro. Crockett e Tubbs, disfarçados, fazem o transporte de grandes carregamentos de drogas no sul da Flórida na tentativa de identificarem o grupo responsável pelas mortes de seus amigos, e com a missão de investigarem a Nova Ordem do Submundo. E os limites irão se confundir quando os parceiros começarem a esquecer qual o caminho de volta e de que lado da lei eles têm que ficar.

Primeiramente, é com convicção que digo que Michael Mann capturou com estilo o visual do seriado. Tudo o que marcou o seriado foi muito bem transferido para os dias atuais – boates, carros exuberantes, ternos de luxo, mulheres bonitas, etc. – consolidando todo aquele visual paradisíaco e contrastante de cores que acabou virando marca de muitos filmes e séries policiais, e ainda manteve alguns vestígios da época (como o mullet e o bigode de Colin Farrell). Esteticamente, o filme é muito bonito de se ver. Tecnicamente, Mann também faz um belo trabalho, recheando a produção com seus já famosos truques de direção, usando e abusando de sua técnica com câmeras digitais, atenuando as belas fotografias noturnas, planos fora de foco e as câmeras em mão livre (essas, usadas em demasia), bastante semelhantes ao trabalho feito pelo diretor em "Colateral", seu filme anterior. Até a trilha sonora se assemelha ao do seu trabalho anterior. Lembrando que em "Colateral" é tocada uma música da banda Audioslave – a bela "Shadows of the Sun" –, o diretor pareceu ter simpatizado demais com a banda de Chris Cornell, tanto que o número de canções do grupo tocadas em "Miami Vice" é bem grande. Passando por Linkin Park e outras baladas pop e techno, a trilha está bem apropriada ao que o filme se propõe.

Vale ressaltar que Mann mostrou muita seriedade na adaptação. Nada de fazer paródias ao visual exagerado, como fora feito com "Starsky e Hutch". "Miami Vice" é um filme sério, feito para adultos, violento e bastante realista. Tudo mais parece um relato de uma investigação policial do cotidiano, sem estrelismos ou ação gratuita, em que os detetives Sonny Crockett e Ricardo Tubs se infiltram no submundo do tráfico de drogas, e investigam a fundo cada detalhe que lhes é importante, tudo com muita paciência, para finalmente chegar a hora de agir e capturar os traficantes. O problema, é que nem todo espectador tem a mesma paciência dos protagonistas, e acompanhar todo o processo de investigação, sem vestígios de movimento, se torna algo demasiadamente cansativo e com cerca de meia hora de projeção já predomina o clima de chatice. 134 minutos é um longo tempo, mas para um bom filme policial, esse tempo pode ser muito bem dividido entre cenas de ação, reviravoltas de roteiro, e boas doses de realismo. O que em "Miami Vice" se vê apenas uma linha tênue nessa última vertente. Chega um certo ponto da projeção que você simplesmente se cansa de ver a mesma coisa – tráfico de drogas aqui e acolá, Colin Farrell pegando a namorada do bandido aqui e acolá, diálogos exaustivos e por aí vai – e não vê a hora de a dupla principal capturar logo o traficante chefe para acabar logo o filme.

Ainda, há de reforçar esse tom de realismo apresentado pelo filme. O submundo do tráfico de drogas sempre foi abordado pelo cinema, mas muitas poucas vezes de maneira condizente com a realidade – sem dúvida, o filme a retratar melhor essa realidade fora o brasileiro "Cidade de Deus" -, e "Miami Vice" é bem sucedido ao retratar a crueza, a complexidade que envolve muito dinheiro e muitas vidas nesse mundo do tráfico de drogas. Nem por isso o filme deixa de cair no lugar comum em certos pontos, como apresentar regiões suburbanas de países da América como Paraguai e Colômbia como pólos de tráficos de drogas e contrabandos, transparecendo aquela velha impressão de exclusão tida pelos estadunidenses em relação aos outros países da América.

Tal realismo também é demonstrado de maneira forte nas cenas de violência, de modo que o que vemos não parecem ser bem cenas de ação, e, sim, violência crua. Michael Mann não se contém e demonstra muita habilidade nas cenas que envolvem sangue. Exemplos disso, é a muito bem dirigida cena em que um homem leva um tiro de fuzil na cabeça enquanto está com o dedo em um detonador; e a espetacular seqüência no início do filme do assassinato dos federais. Mas todo esse realismo também tem seus momentos ruins, como o aguardado (aguardado pelo fato de o espectador querer se ver logo livre do filme mesmo) clímax, em que a seqüência do tiroteio mais parece um vídeo jornalístico daquelas batalhas em Bagdá (salvo os impressionantes efeitos sonoros). Convenhamos, um pouco de emoção, adrenalina, todos nós gostamos.

Quanto à dupla de protagonistas, Colin Farrell e Jamie Foxx se mostram demasiadamente presos devido a forma com que os personagens foram construídos pelo roteiro. Tudo bem que a idéia era manter ao máximo o estilo de Don Johnson e Philip Michael Thomas – intérpretes de Sonny Crocket e Ricardo Tubs, respectivamente, na série de TV -, esbanjando sempre o ar de superioridade e as caras de durões durante todo o tempo, mas isso os afetou claramente, impedindo-os de se aprofundarem nas personalidades de cada um. Farrell até que tem mais chances que seu parceiro, visto que ele ainda tem uma subtrama romântica a seu favor, mas ele, canastrão como sempre, não demonstra o mínimo de esforço em fazer uma boa interpretação. Já Foxx, digamos que ele fez a sua parte, mas para quem sabe da exímia veia dramática que possui, vê-lo em um personagem tão robótico é quase um desperdício de talento. Quem está bem é a chinesa Gong Li na pele da peculiar Isabella, sem dúvidas, a personagem mais tridimensional da trama.

"Miami Vice" é um filme que certamente não irá agradar fácil a qualquer um. É um filme adulto, denso, e uma péssima opção para quem procura divertimento e cenas de ação. Apresentando uma narrativa extremamente monótona e sem novidades no roteiro, a melhor parte são mesmo os belos cenários com fotografia impecável, além da ótima direção de Michael Mann, que sabe utilizar das câmeras digitais melhor do que ninguém. Pena que todos sabemos que ele é capaz de fazer algo melhor e que dê menos sono.

Thiago Sampaio
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