Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 14 de julho de 2006

Caché

O terrorismo pode assumir muitas formas, por incontáveis motivos. Pode ser um ataque às torres gêmeas, a um quartel ou navio, a um ônibus cheio de crianças, a um bar-restaurante ou como em Caché...

A primeira visão de Caché, de Michael Haneke, pode deixar o espectador um tanto desnorteado; a segunda é capaz de levá-lo a perceber o quanto quis dizer o autor-diretor com sua narrativa visual (plano de conteúdo) e a forma usada para fazê-lo (plano de expressão). Ao citar estes dois conceitos, estamos longe de querer trazer à tona qualquer discussão sobre o caráter inseparável desse binômio numa obra cinematográfica. De resto, os semiólogos chegam a considerar uma contradição no nível técnico ou ideológico qualquer tentativa de apartá-los. Diz-se então: forma e conteúdo não se separam.

Diretor premiado no Festival de Cannes (2005), no qual recebeu também o Prêmio FIPRESCI, Haneke nasceu em Munique, mas foi educado em Viena, onde estudou Filosofia, Psicologia, Teatro e Cinema. Trabalhou durante três anos na TV alemã e já a partir de 1974 encenou diversas peças em países da Europa. Iniciou-se nos longas com “A Rebelião” (The Rebellion) (1993), “Violência Gratuita” (Funny Games) (1997) e “Código Desconhecido” (Code Unconnu) (2000). “A Professora de Piano” (The Pianist), também de 2000, chamou atenção sobre sua competência diretorial, embora o filme tenha sido visto por alguns críticos como uma mistura do patológico com o Kitsch.

Há tempos, segundo lemos, Haneke vinha cogitando de ampliar sua discussão sobre a violência na TV e no cinema e na condenação aos preconceitos e à intolerância contra os culturalmente diferentes. Daí o motivo pelo qual, com apoio financeiro da Alemanha / Áustria / França / Canadá / Itália, lançou-se na realização deste Caché, depois de assistir a um documentário sobre o massacre de duzentos argelinos atirados no Sena em 1961. Para ele, como num país de democracia plena como a França, com jornais e revistas de oposição, onde o debate é aberto e sua tradição cosmopolita está sempre pronta a receber exilados de braços abertos, poderia ocorrer um horror assim?

Caché reflete de certo modo as preocupações de Haneke, pois quando rodou este filme ainda não houvera manifestações de violência e da crise pela qual passou a classe média francesa devido a questões relativas a controle social, absorção de mão-de-obra não qualificada, decisões equivocadas de governo e à manipulação da “verdade” e das emoções pela mídia.

Este drama de sua autoria é aparentemente simples. George, apresentador de TV, pelo visto bem casado, filho sadio de 12 anos, começa a receber vídeos com cenas indicativas de terem sido filmadas em frente à sua casa, mostrando entradas e saídas de pessoas, chegadas e partidas de carro. As imagens e os cartões com garatujas não ofendem, mas sugerem algo do tipo “sei quem v. é e conheço seu passado, há algo de podre nele”. O título original Caché, do verbo “cacher”, significando esconder, ocultar, indica bem isso, alguma coisa escondida ou oculta, um trauma da infância. George começa a investigar o problema mesmo tendo de lutar contra sombras fugidias, imagens de um tempo remoto em sua vida. Alguém quer provocá-lo, perturbá-lo. Inicia-se um estado permanente de suspeita, uma paranóia, enquanto a tranqüilidade marital se desestabiliza e entram em choque questões de confiança e cumplicidade entre marido e mulher.

A mise-en-scène de Haneke é minimalista (uso avaro de recursos técnicos ou criativos, alguns diálogos persistem fora da cena onde foram prolatados), com preferência por planos fixos e longos. Sua objetiva pára muitas vezes como se quisesse contrariar a norma do movimento das imagens tão característico do cinema, como no início do filme, quando utiliza o plano-ponto-de-vista (PPV) com câmara parada em frente a um apartamento e operada por quem arrisca seu anonimato. Também não há música, diálogos só os essenciais, efeitos digitais praticamente postos de lado, pelo menos não usa a câmara cambaleante, não abusa de cortes nem desfoca imagens. Videoclipagem, nem pensar.

De resto, segundo sua entrevista em Cannes, Haneke descrê do cinema como expressão da realidade, pois o autor-diretor faz a planificação, escolhe os ângulos e as linhas de conflito, edita o material filmado, impõe suas conclusões ao final ou convence o espectador de suas certezas, etc. Textualmente: “Nenhum cineasta mostra a realidade, apenas a sua imagem manipulada; também me arrisco a manipular o espectador, mas o faço com o objetivo de estimulá-lo à reflexão, de levá-lo a pensar no que está vendo”. No caso de Caché, Haneke não se restringe unicamente a um problema de quem na infância agiu mal, pois a criança pode não ter consciência de um erro cometido, mas o adulto, sim. Daí o motivo pelo qual se pode ler no subtexto de Haneke uma denúncia do passado da França colonialista, hoje repercutindo nas manifestações violentas de quem saiu de seu país em busca de melhores condições de sobrevivência na pátria da “Liberté, Égalité, Fraternité”.

Cumpre destacar algumas cenas feitas com muito senso de cinema e ganhos na concisão visual da fotografia de Christian Berger: a da discussão do protagonista com um crioulo vindo de bicicleta na contramão, o suicídio de personagem secundário, o encontro com a mãe (Annie Girardot), capaz de perceber algo errado na vida do filho, a das imagens do vídeo quando se rebobina a fita sem ajustar o comando stop e surgem defeitos, a desconfiança do filho pré-adolescente sobre o relacionamento da mãe com o amigo do pai, o caminhar de George pelos corredores do apartamento, filmado na mesma velocidade com a qual o carro se movimentou antes; a do elevador com imagens expressivas dos personagens envolvidos refletidas no espelho, todos em silêncio, a dos recuos na referência espácio-temporal, sugestivos de lembranças revividas, a da câmara fixa no plano de conjunto, onde alguém leva um menino para o carro, movimentos vistos à distância, o encontro desagradável com o filho do suicida: “Vim ver como se comporta quem tem dor na consciência”…

A atuação dos atores é de primeira ordem, não só de Daniel Auteil (“Rainha Margot”, “A Mulher e o Atirador de Facas”) e Juliette Binoche (“Perdas & Danos”, “O Paciente Inglês”), mas de todo o elenco de coadjuvantes. Afinal, perguntam os cinéfilos: quem fez os vídeos, por qual motivo o filme termina em aberto? Pouco importa. Não se faz um filme para explicar tudo. O terrorismo pode assumir muitas formas, por incontáveis motivos. Pode ser um ataque às torres gêmeas, a um quartel ou navio, a um ônibus cheio de crianças, a um bar-restaurante ou como em Caché…

Ótimo filme para reflexão. A ver e rever, decididamente.

L.G. de Miranda Leão
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