Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 26 de agosto de 2006

Manderlay

Manderlay, o segundo filme da trilogia iniciada com Dogville e dirigida pelo dinamarquês Lars Von Trier, veio mais sutil que o seu antecessor, porém ainda causa desconforto, angústia e continua cutucando a ferida dos Estados Unidos.

A curiosidade quase me matou quando Manderlay estreou, fato natural para quem admira o primeiro filme da seqüência. Esperei um novo soco no estômago, considerando que Lars quer atingir a sociedade americana sempre da forma mais cruel e, digamos, ilimitada que ele possa. De certa forma, o filme não correspondeu ao nível de Dogville, sofrendo uma desnivelada considerável em alguns aspectos.

O filme começa logo após Grace (dessa vez interpretada por Bryce Dallas Howard, a cega de “A Vila”) sair de Dogville e acabar parando numa cidade que ainda se servia da escravidão negra, mesmo após setenta anos de sua extinção. Como não podia deixar de ser, a personagem e seu instinto revolucionário, mesmo não tendo nada a ver com o problema, ataca mais uma vez. Ela começa a intervir no sistema do povoado e acaba abalando toda uma estrutura que vinha sendo regida há muito tempo. Ela tenta resolver toda aquela animalização negra e inverte os papéis de dominados e dominadores em Manderlay, começando a implantar um sistema que ela própria achava certo. Com o tempo e com a convivência com os nativos, Grace vai percebendo que intervir nesse sistema acaba acarretando outros problemas sociais dentro da pequena Manderlay e a partir daí, só resta agüentar as conseqüências que ela mesma trouxe pra si e continuar tomando parte de tudo procurando resolver os novos problemas que vão surgindo.

Confesso que comecei incomodado em ver uma outra atriz no papel da revolucionária Grace. Não somente por ter uma adoração suprema pela Nicole Kidman e achá-la insubstituível, mas também porque perde a originalidade que vimos no filme anterior. De quem foi a culpa? Uns dizem que a própria Nicole se recusou fazer Manderlay, outros falam que ela não tinha espaço na agenda para as filmagens. Seja qual for a versão certa, o fato é que Bryce conseguiu passar com sucesso a personalidade da personagem, e mesmo com o profissionalismo da atriz, faltou uma certa desenvoltura que a iniciante ainda está adquirindo. Isso me irritou um pouco, mas o filme foi se tornando tão envolvente que desconsiderei.

O formato continua o mesmo: cenário aberto, com demarcações no solo fazendo com que trabalhemos nossa imaginação para que cada um tenha sua visão de Manderlay. Percebemos até certo exagero na quantidade de elementos dispostos no cenário se comparado à Dogville, mostrando a superioridade de Manderlay à Dogville, o que perde, de certa forma, aquela sensação de vazio com que ficamos ao assistirmos ao primeiro filme da série. Essa nova forma de fazer cinema, baseado no teatro e no uso da imaginação do público é dura de ser aceita pelos fãs dos filmes hollywoodianos que pintam e bordam no uso de cenários ditos perfeitinhos, mas considero um ponto positivo para o filme, já que foge da mesmice e por podermos formatar na nossa mente como seriam esses lugares de tanta deficiência social.

Lars Von Trier continua com sua excepcional direção, usando e abusando da câmera solta que dá um ar de documentário e que reforça os sentimentos dos personagens nas cenas, ajudados pela iluminação bem trabalhada. A única queixa que eu tenho é sobre os cortes grotescos que percebemos entre algumas cenas. Diria que é uma verdadeira ofensa ao expectador, mas quem sabe não foi essa a intenção de Lars: deixar o público ofendido por fatores secundários aos do filme.

Manderlay é mais corrido, melhor distribuído, parecendo até mais rápido que Dogville, mas não tem a magnitude deste. A qualidade do enredo e da produção caiu em relação ao primeiro. Manderlay não causa tanto impacto no desenrolar da sua história, algumas vezes parecendo previsível e nem sempre sendo; ao contrário de Dogville, que se mostra imprevisível e inconstante do começo ao fim. Talvez o grande erro dessa seqüência foi o fato de querer ser tão grandioso quanto o primeiro, e acabou fracassando em partes.

Sem grandes novidades, Manderlay continua tendo sacadas fabulosas no decorrer da história, frutos da inteligência mor do diretor, mas o que não é suficiente para elevar o padrão à Dogville, não se revelando uma obra de arte assim como a primeira produção, porém é interessante de ser assistido por promover a discussão da humanização tanto dos negros quanto dos brancos e sua função dentro da sociedade americana. É uma metáfora que incomoda e pode até parecer preconceituosa, causada pela despreocupação em criticar os americanos, vinda de Von Trier, apesar de estar sendo muito mais aceita do que Dogville, e muito melhor de ser digerida pela audiência. Agora só nos resta esperar o último filme da trilogia e ver o que mais Lars Von Trier pode aprontar para o público, usando seu brilhantismo e sua incapacidade de ser ameno no que está trabalhando.

Diego Benevides
@DiegoBenevides

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