Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 30 de novembro de 2005

Manderlay

Essa continuação de Dogville é boa como uma comida exótica: você precisa aprender a apreciar o tempero e talvez tenha problemas para digeri-la. O filme tem aquela coisa que desperta certo incômodo, e conseqüentemente, o leva a pensar.

Lars von Trier, o diretor dinamarquês de 47 anos, é uma pessoa que sabe se comunicar. “Sempre fui o garoto mais fraco da classe, e sempre apanhei muito dos outros garotos”, ele diz, “mas eu gritava, e sabia o que dizer”. E agora que encontrou seu meio, não há o que o faça se calar. Lars Trier, que colocou o “von” mais tarde em seu nome por achar que soava bem, já arrancou muitos prêmios e elogios com seu “Dançando na Chuva”, e também reações diversas com o chocante “Os Idiotas”, filme do movimento Dogma 95. Vindo de um pequeno país europeu onde o bem estar social e uma sociedade justa e igualitária é uma realidade desde o início de sua vida, não é de se admirar que ele nutre algum estranhamento em relação as paradoxos de uma sociedade como a norteamericana. Apesar de nunca haver viajado aos Estados Unidos por morrer de medo de avião, von Trier olha com olhos críticos para a cultura da falsa liberdade e hipocrisia de uma sociedade que tem tanta responsabilidade diante do mundo como a norteamericana, e junto dele nos faz vermos tudo com outra visão. Aí entra, então, a trilogia U.S.A, que tem o terceiro filme, Washington, marcado para 2007.

Manderlay começa após o violento final de Dogville, onde acompanhamos Grace Mulligan (Bryce Dallas Howard, de A Vila, substituíndo Nicole Kidman) e seu pai (Willem Dafoe, substituíndo James Caan), que acabaram em uma pequena fazenda no sul dos EUA chamada Manderlay. Chegando lá eles presenciam o açoitamento de um negro chamado Timothy (Isaach De Bankole). Grace manda pararem imediatamente o carro e corre para a fazenda, contra a vontade de seu pai, e descobre que os fazendeiros ainda usam de mão de obra escrava, setenta anos apos a abolição da escravidão nos EUA. Vendo isso como uma grande injustiça, Grace convoca alguns dos gângster de seu pai e começa a administrar a fazenda, transformando-a em um business, através do uso da força. Assim, força os donos brancos trabalharem na lavoura, enquanto aos negros é dada liberdade de ir e vir e uma parte da renda do plantio. Os escravos são liderados por Willhelm (Danny Glover), um homem idoso que costumava servir a Mam (Lauren Bacall), a dona da fazenda. Entretanto, a experiência de liberdade idealizada por Grace nunca é atingida, e as previsões cínicas de seu pai mais uma vez se confirmam. Com o progredir das coisas, tempestade de areia, a falta de comida, a morte de uma criança, a execução de uma idosa e o enrustido desejo de Grace por Timothy, é levantada a questão de que talvez as coisas estivessem melhores da forma que estavam.

Manderlay causa menos impacto na esfera psicológica que Dogville, talvez por enfocar mais as causas sociais que o caráter humano. Contudo, assim como seu antecessor, o filme é impiedoso, e causou uma reação extremamente negativa naqueles críticos que só enxergam anti-americanismo na maneira irreverente que o diretor dinamarquês aborda essas questões difíceis.

A concepção visual continua a mesma, com o cenário quadrangular de limites pintados no chão, como se fosse uma planta do lugar. Isso reforça a idéia do diretor de que a história poderia se passar em qualquer região da América. A voz sarcástica do mesmo narrador, John Hurt, sublinha bem o caráter épico, que ainda é mais bem marcado pela divisão em oito capítulos.

Não tenho qualquer ressalva quanto a interpretação de Bryce Dallas. Ela demonstrou muito bem o caráter idealista de Grace, que acaba por se mostrando mais maquiavélica que altruísta, mas faltou a falsa fragilidade, vulnerabilidade e beleza de Nicole Kidman.

Trocando tudo em miúdos, Lars von Trier tem como alvo a América liberal branca, representada por Grace, que pensa que sua culpa e humanidade são tão imensas, que sabe o que é melhor para as outras raças. Contudo, o que se mostra é um Estados Unidos acuado e despreparado para receber socialmente o negro, o qual continua, até hoje, marginalizado e oprimido.

Sim, eu gostei do filme, ele precisa ser visto, mas principalmente pelas pessoas que provavelmente passarão longe, por causa do preconceito e descaso. E não é que isso só confirma mais uma vez o argumento de von Trier? Ponto pro filme, então.

Cinema com Rapadura Team
@rapadura

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