Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 08 de janeiro de 2006

Soldado Anônimo

Soldado Anônimo não é um filme de guerra. É antes de tudo um filme sobre o homem e sua fragilidade. É muito belo, visualmente inesquecível. Mostra que guerra é, na verdade, um estado de espírito. E no final você sai com aquela idéia de que o soldado sai da guerra, mas a guerra nunca sai do soldado.

Os jovens americanos se alistam nos Fuzileiros para proteger a liberdade na América, ou apenas como uma desculpa para matar de forma impune? Será que amizade, a irmandade que surge, vale o dano causado à mente e alma? Há alguma solução adiante para os conflitos infinitos no Oriente médio, ou estão os soldados, após uma vida de treinos fatigantes, simplesmente encalhados?

Essas são apenas algumas questões levantadas por Soldado Anônimo (Jarhead), uma obra de arte visual do diretor Sam Mendes (de Beleza Americana). Todavia, se você espera um filme de guerra contemporâneo, com banhos de sangue nos moldes de O Resgate do Soldado Ryan ou Platoon, ficará terrivelmente desapontado. Jarhead não é um filme sobre a guerra, na verdade é o oposto. É um filme sobre as inseguranças dos homens, sobre sua ansiedade por batalha e, principalmente, sobre suas frustrações. Ele mostra o sacrifício do conforto do lar e das companhias da família e das mulheres por objetivos e valores mais embaçados que uma miragem no deserto.

Baseado no livro de Anthony Swafford (interpretado por Jake Gyllenhaal de O Dia Depois de Amanhã), um jovem fuzileiro treinando e servindo seu tempo de 1989 ao fim da Operação Tempestade do Deserto, da Guerra do Golfo. No caminho conhecemos seu líder de pelotão, o durão Sargento Sykes interpretado por Jamie Foxx (de Ray), Troy (Peter Sarsgaard de Hora de Voltar), o parceiro convicto pela guerra, mesmo sem saber bem o motivo, e todo o resto do pelotão de loucos que se divertem juntos, bebem juntos, treinam e lutam juntos. Enquanto passam meses esperando no deserto, lutam para afastar o tédio e esperam, quase eternamente, pelo momento quando serão mandados para a batalha. Eles querem que seu tempo valha de algo, querem uma história para contar quando retornarem. Querem que a experiência de compartilhar algo compense o sacrifício que fizeram para fazer parte disso. Eles sacrificam parte de si para se tornarem matadores e defensores treinados, mas o que acontece se não conseguirem essa parte de volta? É neste clima que se passa a maior parte do filme e enquanto os Estados Unidos escalam mais e mais homens para o confronto com Saddam Hussein, as frágeis emoções de Swafford lentamente se revelam.

Visualmente, Soldado Anônimo é inesquecível, apesar da falta de combate externo, ou principalmente como resultado disso. A fotografia é feita por Roger Deakins, o preferido dos irmãos Cohen. O que ele faz é uma obra de arte: uma imagem branca do deserto, onde o céu, nunca azul, é de um amarelo pálido e lembra muito o visual de Três Reis. Aqui o cenário parece ainda mais inóspito que um campo de sal, um lugar nada acolhedor ou humano, impossível de se adaptar. O ambiente surreal vai ao extremo quando o pelotão cava próximo a poços de petróleo incendiados pelas tropas iraquianas. A tela é completamente negra, um contraste com todo o resto do filme. Neste momento realmente parece que, em meio à chuva de petróleo, aqueles fuzileiros estão em outro planeta. E de certa forma estão mesmo.

Há momentos de câmera na mão, o recurso de documentário muito usado no Resgate do Soldado Ryan, que nos aproxima ainda mais daqueles homens. A interpretação de Jake Gyllenhaal é impecável. A cada momento ele preenche a tela de emoção, humanizando de forma esplêndida aquele ambiente inóspito. Mesmo assim, o filme é essencialmente minimalista, de cenários claros e sem muitos detalhes, personagens falsamente lineares, todos vestidos da mesma forma, agindo da mesma forma e pensando da mesma forma. E ainda assim cada um demonstra um sentimento diferente.

É estranho o sentimento que se sai do cinema após Soldado Anônimo. Você acompanha o tédio e a espera dos soldados e tem certeza de que aquela monotonia, e até certa segurança, irão acabar de repente com um grande e barulhento banho de sangue e poeira. E esse momento quase surge, várias vezes, mas nunca chega. O clímax nunca é atingido. O interessante é que após algum tempo você se vê com o desejo mórbido de ver alguma matança, mas ela nunca acontece. Quando a guerra acaba, após nada de glorioso acontecer, compartilhamos do misto de frustração e alívio com os personagens. É como sexo, mas sem nunca chegar ao orgasmo.

Algumas pessoas se desapontaram com a inatividade do filme. Na verdade eu considero um triunfo um filme como este ser feito em um tempo quando estamos condicionados a esperar certas convenções do normal “filme de guerra”. Soldado Anônimo expressa que não importa o que faça durante o tempo servido nos fuzileiros, não importa o quão pouco você vê em termos de carnificina e horror, a guerra continuará sempre fazendo parte de você. E como diz Swafford:

“Cada guerra é diferente. Toda guerra é a mesma”.

Leonardo Paixão
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