Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 25 de agosto de 2006

Sonhadores, Os

Bernardo Bertolucci volta com um filme cosmopolita, charmoso, e bastante encantador. Destaque para o sítio oficial de “Os Sonhadores”, extremamente interativo, talvez até tão interessante como o filme.

“A petição é um poema e o poema é uma petição” (Georges Fontaine, 1966). Um jovem vai viver em Paris com a intenção de aperfeiçoar o seu francês. Ele é Matthew, um rapaz estadunidense, que vive sozinho em um hotel sujo e freqüenta a cinemateca da cidade. O local exibe todos os tipos de filme, do melhor ao pior, um deleite aos cinéfilos da época, e é, também, o local preferido de Isabelle e Theo. Os dois são irmãos, e têm em comum com o Matthew, uma paixão assumidamente intensa pelo cinema. Durante uma manifestação pela permanência de Henry Langlois (uma pequena participação do ator Jean-Pierre Léaud), na presidência da cinemateca, Isabelle conhece Matthew, e logo o apresenta ao seu irmão. Os dois convidam o rapaz para jantar, apresentando-lhe aos seus pais, que viajam no dia seguinte, deixando a casa por conta dos filhos. A partir daí, Matthew muda-se do hotel para a casa dos irmãos, passando a viver algo inesperado e delicioso.

As vidas de Isabelle e Theo imitam o cinema da forma mais apaixonada possível. Eles têm uma relação, no mínimo, insólita, em que a vida e o cinema se misturam, assim como eles próprios. São irmãos gêmeos e, como afirmam no filme, siameses. Donos não do mesmo corpo, mas do mesmo espírito. Os dois submetem Matthew a um teste, que consiste em quebrar o recorde do filme “Band à part”, de Godard, em que os três atores correm jovial e inconseqüentemente pelos enormes corredores e salas do Louvre. Depois desse teste de confiança, os irmãos passam a aceitar o rapaz, formando uma espécie de triângulo amoroso, um dos mais charmosos do cinema de todos os tempos.

Além do filme de Godard, “Os Sonhadores” faz belíssimas referências a “Scarface”, “Shock Corridor” e a outros grandes clássicos. Tudo na mais perfeita harmonia entre as cenas dos filmes antigos com a maravilhosa atuação do trio adolescente, que fazem arrepiar os pêlos do corpo dos cinéfilos mais orgulhosos e emotivos. Eva Green, bela jovem francesa está na pele de Isabelle, a donzela da trupe. Em seu primeiro papel, a moça já impressiona. Creio que ela tenha sido o tipo de adolescente sedutora que Bertolucci tentou fazer com Liv Tyler em seu “Beleza Roubada”, mas que não funcionou. Não me assustaria em vê-la como, juntamente com Ludivine Sagnier, a mais nova musa do cinema francês. As duas fazem jus ao título de Brigitte Bardot e Catherine Deneuve. Louis Garrel, que interpreta Theo, também se mostra bastante talentoso, porém não mais do que Michael Pitt, que saiu de seriados adolescentes para provocar, e abusar de sua coragem, fazendo cenas bastante ousadas.

Impossível não comparar “Os Sonhadores” a outros dois filmes do cineasta: “O último tango em Paris” e “Assédio”. O mais recente é como o encerramento de uma trilogia erótica. Um erotismo que poucos podem fazer, pois é difícil, em uma película, exibir cenas tórridas de sexo, com câmeras bastante focalizadas nos órgãos sexuais dos atores, e tornar tudo isso natural, mesmo havendo possibilidades evidentes de incesto. Essas possibilidades ficam apenas na mente do espectador. Apesar da estranha relação entre Isa e Theo, jamais fica óbvio que há entre os dois, sexo propriamente dito. Isa, sim, ama Theo como homem, mas os dois não permitem um ao outro, praticá-lo. Talvez para isso sirva Matthew, o terceiro elemento.

Outro fator importante é o pseudo-sentimento revolucionário de Theo. O rapaz é um grande admirador de Mao Tsé Tung, considera-se um revolucionário, porém nada faz para merecer o título. Os três jovens permanecem, por tempos, praticamente enfornados na casa dos gêmeos, vivendo o sexo de forma alienadora. Só vão para a rua lutar pelo que dizem fazê-lo, quando a rua vai até eles.

O debate acerca do tema “O que estávamos fazendo em maio de 1968?” teve a presença ilustre de Fausto Nilo, arquiteto e famoso compositor de belas músicas. Fausto nos contou que lutava contra a ditadura na universidade, como a grande maioria dos que estavam na luta. Ele entrou na política através do cinema, coincidentemente. Talvez por isso o filme o tenha emocionado bastante. Fausto também nos contou um fato engraçado, que por ser anti-imperialismo, até hoje possui um péssimo inglês. O filme é um fato isolado, pois, naquela época, jamais um rapaz com características anglo-saxãs, haveria formado essa união com jovens franceses, porque havia uma grande resistência contra estadunidenses e alemães em todos os lugares em que havia manifestações do tipo. Fausto terminou dizendo que apesar das diversas vezes em que foi seguido pelas ruas, nas madrugadas, a luta valeu a pena.

Ruth Cavalcante, psicoterapeuta, comentou que a primeira questão significativa acerca do assunto, foi quando exilaram-na no Chile. Lá, mais de 600 pessoas de países latino-americanos, passavam pela mesma situação, na qual ela pôde sentir-se, enfim, latino-americana. A segunda experiência foi o seu sentimento de mundo ocidental, quando se mudou para a Alemanha, onde teve sua filha. Ruth disse que sentia algo como o banzo (doença característica dos escravos, que, ao serem vendidos, morriam com saudades da terra natal). Ruth encerrou o seu discurso com a leitura de um poema de uma amiga alemã.

Um espectador tomou a palavra e nos contou que apesar de tudo pelo que passou, a luta dos estudantes foi necessária. As grandes massas lutavam pela não-privatização do ensino, mas, por trás disso, havia a ditadura e o imperialismo estadunidense. Valeu a pena a luta porque, sem ela, a ditadura teria feito estragos bem maiores.

Sobre um questionamento de um espectador acerca da juventude de hoje em dia, os debatedores nos contaram que atualmente, pelo fácil acesso à informação, os jovens têm compreensão muito mais razoável sobre o racismo, os direitos humanos, etc. Que há um leque de possibilidades sobre as quais podemos nos preocupar. Que, na verdade, a grande mazela da nossa juventude, é o ensino voltado apenas ao vestibular.

O Cinema de Arte dará uma pequena trégua no carnaval, e retornará com a sua programação exibindo o premiado filme espanhol “Mar Adentro”, com Javier Barden, em que o ator interpreta um atleta tetraplégico que luta pelo direito de morrer. Possivelmente, o CA voltará em um novo horário, do qual, nós do CCR, iremos informá-los com antecedência.

Cecilia Vieira
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