Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 04 de setembro de 2024

Longlegs: Vínculo Mortal (2024): o Livro do Apocalipse à la Osgood Perkins

Novo longa do diretor sabe aproveitar a teatralidade de Nicolas Cage e a habilidade de Maika Monroe de expressar o desconforto extremo em uma história procedural satânica, em que o diabo está nos detalhes.

“E eu pus-me sobre a areia do mar, e vi subir do mar uma besta que tinha sete cabeças e dez chifres, e sobre os seus chifres dez diademas, e sobre as suas cabeças um nome de blasfêmia.” A frase, retirada do Livro do Apocalipse, capítulo 13, versículo 1, é uma das diversas menções ao Diabo na Bíblia Sagrada, descrevendo o surgimento das bestas que, junto a Lúcifer, formam a Santíssima Trindade invertida. Ela, também, é o fio condutor que liga o destino dos personagens de “Longlegs: Vínculo Mortal, novo filme de Osgood Perkins (A Enviada do Mal”).

No longa, a agente do FBI Lee Harker (Maika Monroe) deve trabalhar com o agente Carter (Blair Underwood) para desvendar a identidade do serial killer Longlegs (Nicolas Cage), responsável por, de alguma forma, incentivar diversos assassinatos a famílias cometidos pelo patriarca da casa, seguido do suicídio dele. O que une todos os casos é o fato das mortes terem acontecido sempre próximas ao aniversário de 9 anos da filha da família, e em todas as casas foram encontrados cartões de aniversários com mensagens criptografadas e a assinatura de Longlegs.

Capitaneado por uma campanha de marketing de dar inveja a qualquer publicitário, com teasers obscuros e mensagens criptografadas; e impulsionado pelas primeiras impressões nas redes sociais cheias de superlativos que a crítica e criadores de conteúdo norte-americanos adoram, “Longlegs” caiu nas graças do público antes mesmo de sua estreia devido ao hype que foi se estabelecendo como “o filme de terror mais assustador da década” e outros louvores do tipo.

Acontece que quem for na onda das hipérboles usadas para descrevê-lo está praticamente fadado a se frustrar. Já deveria ser do senso comum que o horror é subjetivo: algo que pode ser apavorante para uns, se torna o sonífero de outros. E o filme de Oz Perkins opera nas subjetividades do horror satânico, muito em voga durante os anos 1970 (e também o período no qual a maior parte dos assassinatos de Longlegs se iniciaram); nos detalhes do Livro do Apocalipse e num amálgama de referências de seu gênero macro. 

Entretanto, ao invés de comparar “Longlegs” aos batidos (porém ótimos, sim) O Silêncio dos Inocentes” (1991) e Seven: Os Sete Crimes Capitais (1995), Perkins parece beber mais da fonte do excelente A Cura” (1997), de Kiyoshi Kurosawa; do Caçador de Assassinos (1986) de Michael Mann, e até mesmo da recente série de drama procedural Hannibal, criada por Bryan Fuller. Interessante notar que a personagem de Monroe é praticamente a versão feminina do Will Graham idealizado por Fuller na série de TV, sendo ele também um agente do FBI altamente sensível, criando vínculos empáticos com os assassinos. Lee Harker aparenta estar sempre em tremendo desconforto, evitando trocas de olhares, com um ar quase apático.

E todas estas referências têm em comum uma certa teatralidade inerente aos seus respectivos vilões, seja pela forma como eles se comportam ou pelos caprichos que utilizam para eliminar suas vítimas de forma sempre impactante. Isso faz com que Cage, ator conhecido por seu apreço pelo caricato, tenha amplo espaço para fazer de seu personagem um mistério delicioso de ser revelado: seja pelo jeito afetado de falar ou até mesmo pela sua aparência inspirada numa mistura entre um astro de glam rock e um artista falido atolado de cirurgias plásticas mal feitas. 

Em “Longlegs”, Cage incorpora com vigor o imaginário popular de um adorador do Diabo na época do famigerado pânico satânico, com toda dramaticidade que vem junto às imagens do Catolicismo e do Satanismo, e também numa interpretação própria de Mefistófeles, da peça elisabetana A Trágica História do Doutor Fausto, encarnando o mensageiro de Lúcifer — ou O Homem-Lá-de-Baixo, como o assassino se refere ao seu mentor no filme. E a direção acerta em fazer de Longlegs mais uma figura onipresente, como o demônio que se encontra nos detalhes e manipula a todos nas entrelinhas, do que uma constante em cena.

O trabalho de câmera de Perkins ajuda a trazer os elementos do Apocalipse para a trama além da performance de seu antagonista, com o uso de lentes que auxiliam na criação de uma atmosfera opressora em volta da protagonista, a câmera apontando para Harker sempre ao centro de tudo e reforçada por uma das falas da personagem de Kiernan Shipka (A Enviada do Mal), aqui em uma breve porém necessária participação: como se a agente estivesse em um limbo entre o céu e o inferno, complementada por diversos shots em que ela aparece num espaço liminar desconfortável entre uma porta que abriga ambientes de luzes avermelhadas e uma escadaria direto para a luz do dia, por exemplo.

Perkins também traz uma sacada interessante ao enredo ao fazer bom uso da filmagem em digital representando o presente da história e filmando em 35mm todos os momentos referentes ao passado de Harker, controlando a granulação das imagens de flashback para não destoar tanto do digital e estilizando, especialmente, as cenas de assassinato de uma das famílias.

Ao final, “Longlegs” se consagra ao trazer o sobrenatural para o realismo de forma mais natural do que o diretor fez em A Enviada do Mal. Embora pudesse ter aproveitado melhor o material do procedural que foi amplamente divulgado pelo marketing do filme (como o site The Birthday Murders), Osgood Perkins extrai o melhor de seu elenco para personificar e conjurar as bestas do Apocalipse em tela.

Jacqueline Elise

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