Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 23 de julho de 2024

Deadpool & Wolverine (2024): estourando o multiverso (e o orçamento)

Embarcando no MCU no pior momento da franquia, Ryan Reynolds e Hugh Jackman pegam uma premissa quase esgotada e a transformam em uma sátira autoconsciente da qual apenas Deadpool seria capaz.

O multiverso cansou. Essa não é uma afirmação de cunho pessoal (mentira, é um pouquinho, sim), mas uma constatação sobre o momento em que a indústria do entretenimento se encontra. Toda franquia tem sua versão do multiverso atualmente, e todas elas tentam emplacar essa premissa como forma de fazer dinheiro em cima de nostalgia barata. Tirando honrosas exceções, quase ninguém soube lidar com esse mecanismo narrativo — a própria Marvel parece ter aprendido apenas na série “Loki“, e, bom, é uma série de streaming, não um filme. Pois “Deadpool & Wolverine” finalmente dá a entender que a Casa das Ideias entendeu como se faz.

A quem for esperando uma peça essencial do quebra-cabeças multiversal da Marvel, planejado meticulosamente por Kevin Feige como se fosse Michelangelo no teto da Capela Sistina, bom… O que valida o filme é justamente passar longe disso. Em vez disso, é um longa mais preocupado em utilizar a química imbatível entre os amigos Ryan Reynolds e Hugh Jackman para contar uma história sobre isso mesmo: amizade. “Deadpool & Wolverine” não tem qualquer pretensão de salvar o multiverso, mas apenas de dar ao fã uma obra que gere boas gargalhadas e emoção na medida certa.

O filme todo tem na relação entre Reynolds e Jackman sua espinha dorsal, e parece ter sido idealizado apenas para que eles pudessem estrelar juntos. Sem qualquer cerimônia, “Deadpool & Wolverine” exuma o cadáver de “Logan” para criar uma versão de Wolverine que seja mais próxima daquela que se firmou no imaginário de toda uma geração que cresceu assistindo às aventuras dos X-Men nos desenhos ou lendo nos quadrinhos. Seu traje, seus dilemas, seu temperamento… Tudo nesse novo personagem é feito para nos dar a impressão de que esse Wolverine é finalmente aquele com o qual crescemos.

Pode até ser que seja, na verdade, mas não há como saber ao certo. É aí que entra a questão do multiverso: se for o nosso Wolverine, as coisas não terminam bem para os X-Men. Aquilo que não se vê é o que traz peso à narrativa toda, tanto para ele, quanto para Deadpool. E, mesmo assim, há espaço para mais. Algo que “Deadpool & Wolveirne” faz com leveza é incorporar o passado dos filmes da Marvel produzidos pela extinta Fox de forma definitiva ao MCU. Não é exagero afirmar que a memória da própria Fox é um personagem central da trama, trazendo consigo uma legião de personagens que, se não fosse por esse longa, jamais teriam ganho um final. Há uma carga sentimental muito forte por trás de algumas participações mais que especiais justamente por isso. Em outras, apenas a intenção de rir de si mesmo. Mas não se trata do fan service gratuito que, por exemplo, “Doutor Estranho no Multiverso da Loucura” faz. Aqui, tudo faz sentido. Em vez disso, o fan service ganha tons de sátira autoconsciente, algo que apenas Deadpool com sua habilidade de transitar entre universos distintos poderia fazer.

Fazer isso tudo funcionar de forma orgânica não é tarefa fácil, mas, por sorte, Reynolds tem outro grande parceiro: Shawn Levy. O diretor é uma das cabeças que melhor entende o cenário atual da indústria, e já converteu sua leitura em entretenimento diversas vezes antes. Junto a Reynolds, por exemplo, ele já trabalhou conceitos de multiverso em “Free Guy” e viagem no tempo em “Projeto Adam“, e sabe trabalhar sentimentalismo e nostalgia como poucos, vide o sucesso de “Stranger Things“. Ainda que haja um pouco de dificuldade em tornar as cenas de ação coerentes ou mesmo em esclarecer como algumas coisas relativas às dezenas de linhas temporais envolvidas, Levy faz um trabalho competente mais uma vez. Nenhum filme do MCU tem tantos recursos à disposição quanto “Deadpool & Wolverine”, mas Levy sabe conduzir tudo de forma a sempre elevar Reynolds e Jackman e praticamente colocá-los em um pedestal.

É sempre bom lembrar que, no fim, tudo é dinheiro. A exumação do cadáver da Fox, as incontáveis referências proferidas em velocidade estonteante pelo Mercenário Tagarela, os personagens de nossas infâncias… Mais que uma celebração, trata-se da indústria canibalizando a si mesma para continuar ganhando dinheiro fazendo apenas mais do mesmo. Ainda assim, há um toque de inteligência em “Deadpool & Wolverine”, algo que já há algum tempo faz falta nos filmes do MCU.

Julio Bardini
@juliob09

Compartilhe