Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

The Crown (Netflix, 6ª temporada): adeus agridoce à Rainha e à Elizabeth

Série chega ao fim com uma temporada morna, ainda que melhor do que a anterior, e enquanto as tramas de outros membros da Família Real não agradam, o adeus à soberana é gracioso e satisfatório.

Desde a morte da rainha Elizabeth II, em 8 de setembro de 2022, o Reino Unido voltou a ter um rei depois de 70 anos, com a coroação de Charles; Harry se afastou da Família Real e publicou um livro de memórias escandaloso; e “The Crown” chegou ao fim com o lançamento de suas duas piores temporadas.

Depois de ter seu annus horribilis em 2022, a série da Netflix se despede deixando um gosto agridoce na boca dos fãs, talvez os únicos que se deram o trabalho de concluir a nova temporada. Dividido em duas partes — uma cobrindo os momentos finais de Diana, outra acompanhando a juventude de seus dois filhos em meio a outros capítulos da Família Real — o último ano não empolga e pouco tem a dizer, mas ainda termina com dignidade.

Começando pelos quatro capítulos lançados na primeira parte, acompanhamos as férias de Diana (Elizabeth Debicki) em Saint-Tropez, tendo a chance de aproveitar bons momentos ao lado de seus dois filhos no iate de Mohamed Al-Fayed (Salim Daw). O magnata egípcio tem o plano de casar seu primogênito Dodi (Khalid Abdalla) com lady Di — a fim de conquistar seu tão sonhado vínculo com a monarquia britânica — e o manipula para que ele deixe sua então noiva e se aproxime da princesa. Assim, Diana vai se deixando levar pelo conforto que a companhia de Dodi lhe proporciona, encontrando-se depois encurralada pelos Al-Fayed e pela imprensa.

Já no terceiro episódio, o fatídico momento em um túnel de Paris acontece, e a série tem de lidar com as consequências da morte de Diana — e não faz isso bem. Peter Morgan, roteirista e showrunner, deve ter pensado que colocar uma “Diana fantasma” tendo um último diálogo com dois daqueles que mais lhe causaram sofrimento em vida seria uma boa forma de oferecê-los o perdão necessário para que eles seguissem suas vidas — e a série, sua narrativa. No entanto, a ideia é apenas brega, sendo reutilizada na segunda parte da temporada, ainda que de melhor gosto.

Na sua vez de interpretar lady Di, Elizabeth Debicki teve pouco com o que trabalhar, e a pouca agência de sua personagem continua aqui. Tudo acontece com Diana, ela pouco pode escolher, e embora a autora que vos escreve não tenha vivido durante os tempos da princesa, é difícil acreditar que ela era tão passiva como a série a pintou em seus últimos anos. Mas assim o foi, e então chegou a vez de William e Harry tomarem o protagonismo. Para citar o episódio 4 da temporada, enquanto marcha à frente do caixão de Diana, William pergunta porque há tantas pessoas chorando por sua mãe, no que seu avô Philip responde: “Elas não estão chorando por ela. Estão chorando por vocês.”

Nos primeiros momentos de William (Ed McVey) como um jovem adulto, é inevitável sentir pena da tragédia que lhe aconteceu e ter simpatia pelo garoto que tanto se assemelha a sua mãe. Porém, a insistência da série em dar um protagonismo maior ao príncipe acaba virando a chave e deixando o que antes era interessante, algo monótono. E isso se deve muito à inserção de Kate Middleton (Meg Bellamy) na história.

O romance dos dois é retratado como meant to be, almas gêmeas com ajuda do destino (e de uma mãe esperta), e pelo que parece ser toda a segunda metade da temporada, acompanhamos o tédio que é este núcleo. Soma-se a isso a irritante participação de Harry (Luther Ford), o irmão mais novo de William, sempre à sua sombra, sempre o problemático, como ele tanto enfatiza. A sensação que fica é a de que Peter Morgan pouco se preocupou em dar uma chance ao personagem, e isso parece errado até com a própria versão de Diana que ele escreveu. Afinal, ambos são os amados filhos da princesa.

Um grande incômodo das duas temporadas finais é a falta de arcos temáticos que eram tão marcantes nos anos anteriores da série. Acontecimentos por vezes pouco relevantes ou de pouco interesse se tornavam peças fundamentais na construção de uma narrativa cíclica. No entanto, os capítulos mais recentes apenas jogam cenas da vida da Família Real como se Morgan dissesse: “Vocês já sabem o que aconteceu, não preciso dar significado a isso” – sendo que era esse o diferencial de seu roteiro! Um exemplo gritante é o polêmico episódio da vida de Harry em que ele decide ir para uma festa à fantasia vestido com um uniforme nazista. Assunto já tocado por várias vezes na mídia desde que aconteceu, foi também revisitado pelo próprio Harry em seu livro de memórias “O que Sobra”, em que ele dá detalhes sobre o maior envolvimento de William e Kate na decisão de usar o uniforme, e reflete sobre sua vergonha e arrependimento. Na série, o momento apenas acontece, a Família Real balança a cabeça negativamente, decide como puni-lo e vida que segue, sem grandes reflexões sobre a significância do ato ou sobre os pensamentos de Harry.

A intenção aqui não é defender algum membro da realeza, e muito menos a monarquia britânica, mas especialmente nesta última temporada as preferências de Morgan se transparecem. Enquanto Harry é ignorado e descartado, William parece ser o melhor posicionado como herdeiro ao trono, mais bem-visto até que seu pai (o que parece refletir a preferência do povo britânico), e por sua vez o agora Rei Charles III (Dominic West) continua retratado como o “quase lá”, com a possibilidade de abdicação da sua mãe novamente trazida à tona. Ao longo de toda a série, a mensagem sempre foi: a Coroa está acima de tudo e todos. Mas enfim, com a partida da rainha Elizabeth II, Morgan decidiu escolher Ela. A soberana mais longeva do Reino Unido teve sua homenagem e uma despedida graciosa.

O fio narrativo que traz Elizabeth (Imelda Staunton) ao seu fim é aquele que foi o mais forte desde o começo: seu vínculo com Margaret. Antes da abdicação que levou seu pai ao trono, as jovens podiam ser apenas duas irmãs, vivendo a vida juntas, passando pelas mesmas experiências lado a lado. O destino não quis que fosse assim, e quando Elizabeth sobe ao posto de rainha, Margaret fica só. Embora tenha perdido sua excelência e errado com alguns de seus personagens, “The Crown” sempre fez Margaret brilhar. Seja com a doçura e a vulnerabilidade de Vanessa Kirby, com a ironia e a sagacidade de Helena Bonham Carter, ou com a vivência e a resolução de Lesley Manville, a personagem teve alguns dos arcos mais emocionantes da série, e foi quem sempre trouxe humanidade à Elizabeth quando ela insistia em ser apenas a personificação da Coroa. Ao lembrar que a rainha era também irmã, o público podia ver que em meio às futilidades, ainda havia coração. No episódio 8, talvez o melhor da temporada, tal vínculo é posto em destaque.

“The Crown” chega ao fim no momento certo, não pelo acontecimento histórico retratado em seu final — esse sendo até pouco importante meio a outros tantos candidatos — mas pela quase admissão de Peter Morgan de ser incapaz de adaptar os dias atuais da Família Real britânica. A verdade é que a História só consegue ser polida e embelezada quando já está distante, e talvez por isso a melhor versão da série tenha sido seu começo.

Louise Alves
@louisemtm

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