Estúdio desperdiça potencial de uma das premissas mais interessantes dos últimos anos para entregar mais do mesmo, sempre em favor de um futuro que parece cada vez mais longe de chegar.
Depois de dois anos frenéticos de estreias consecutivas, a Marvel decidiu frear o ritmo da produção de séries, teoricamente em prol de elevar a qualidade destas obras. Naturalmente, só esse fato já era o bastante para criar uma expectativa mais intensa para “Invasão Secreta”, primeiro lançamento da nova leva de produções seriadas do estúdio. Não bastasse isso, ainda teríamos um elenco recheado de estrelas — de rostos já conhecidos a novidades no MCU —, juntamente com uma proposta de narrativa pé no chão que traria de volta o clima de thriller de espionagem que funcionou tão bem em “Capitão América 2: O Soldado Invernal”. Com todas estas cartas postas à mesa, chega a ser surpreendente como foram necessários tão poucos episódios para a série conseguir se desvirtuar totalmente de uma premissa com tanto potencial.
A decepção aumenta porque os dois primeiros episódios de “Invasão Secreta” mostram o quanto a obra poderia ser um novo marco entre as produções da Marvel. A trama parte da ideia de que os Skrulls, raça alienígena transmorfa apresentada em “Capitã Marvel”, estão infiltrados na cadeia de comando mundial, sequestrando e ocupando os lugares de estadistas e outras pessoas públicas relevantes. A dita invasão do título vem ocorrendo há muito mais tempo do que se imagina, e quem a orquestrou (ainda que impensadamente) foi o próprio Nick Fury (Samuel L. Jackson), usando a habilidade dos aliens para suas missões secretas. Partindo disso, a série prometia um clima de paranoia total, no qual seria impossível distinguir humanos de Skrull, e tudo isso envolto por uma deliciosamente compatível atmosfera de espionagem digna da Guerra Fria, com ares de conflito entre potências e sem seres superpoderosos para intervir. Como, então, tudo isso desandou?
Talvez o primeiro equívoco tenha sido a concepção da história, feita para ser a primeira protagonizada por Fury depois de tantos anos como coadjuvante de luxo. Em apenas seis episódios, já seria difícil desenvolver apenas o enredo da invasão de modo satisfatório, mas o que foi feito pela equipe criativa liderada por Kyle Bradstreet (“Mr. Robot”) é ainda mais questionável. Toda a narrativa dos Skrulls era apenas um pano de fundo para uma (talvez) última aventura do outrora diretor da SHIELD, que agora se mostrava um homem abatido, desgastado e assombrado pelos próprios fantasmas. Não por acaso, todo o elenco principal está diretamente conectado ao personagem de Jackson, indo dos já conhecidos Talos (Ben Mendelsohn) e o coronel James “Rhodey” Rhodes (Don Cheadle), a novas caras como a “amiga” espiã Sonya Falsworth (Olivia Colman) e os Skrulls G’iah (Emilia Clarke), filha de Talos, Priscilla/Varra (Charlayne Woodard), esposa de Fury, e Gravik (Kingsley Ben-Adir), principal antagonista da trama.
Esse protagonista falho, complexo e que está em busca de redenção/compreensão é praticamente a especialidade da Marvel, embora a preferência por seres perfeitamente unidimensionais venha se tornando algo comum em produções recentes do estúdio. Mas com Fury seria diferente, certo? Mais errado, impossível! Enquanto os capítulos iniciais trazem desenvolvimento e profundidade para o personagem cujas ações nunca deixaram de ser questionáveis, à medida que a trama avança, a ambiguidade é trocada pelo puro maniqueísmo. Assim, Gravik parte de um antagonista com propósito para um vilão malvado incapaz de ouvir os próprios companheiros, os mesmos que ele tanto jurou defender, enquanto Fury abandona todo o lado imperfeito e controverso mas necessário, para se tornar o grande herói — com direito a traje e tudo mais —, e único capaz de deter o mal. Isso sem mencionar o MacGuffin inserido somente no penúltimo episódio, quase como se o próprio roteiro desistisse de tudo que foi apresentado até então e tentasse começar de novo. Paranoia e espionagem? Nem pensar. Dois seres poderosos lutando pelo destino do mundo com muito CGI envolvido? SIM! Chega a ser ridículo lembrar que a última série do MCU lançada até então, “Mulher-Hulk: Defensora de Heróis”, tirou sarro exatamente desse tipo de final. Afinal, onde está Kevin Feige para manter a mínima coerência entre as produções?
Se há alguma qualidade que se mantém no decorrer da série é competência em construir diálogos envolventes, mesmo quando os materiais trabalhados são tão vazios quanto se possa imaginar. Ainda que já se espere qualidade nesse quesito de atores do calibre dos que foram escalados para “Invasão Secreta”, é nas conversas entre os personagens que a série encontra seus picos de excelência. Inclusive, Sonya Falsworth merece um destaque à parte, não só pelos diálogos sempre afiados, mas por ser talvez a única personagem que realmente carregava consigo o clima de espionagem que a obra tanto precisava manter. Olivia Colman se mostra completamente à vontade no papel, e mesmo quando suas ações parecem repetitivas e sem contexto aparente, ainda assim eram o suficiente para entreter.
À medida que os episódios avançavam, a forma se sustentava como dava, enquanto o conteúdo descia ladeira abaixo: os roteiristas parecem tão perdidos que ocasionam situações como dois episódios seguidos acabando da mesma forma, apenas para forçar cliffhangers; Varra se deslocando e gastando vários minutos para conseguir uma arma, apenas para no episódio seguinte descobrirmos um arsenal em sua casa; o presidente dos EUA sofre um atentado envolvendo russos e alienígenas (difícil escolher qual despertaria consequências mais bruscas), e a repercussão de um evento dessa magnitude é mínima, de modo que não sabemos como a opinião pública reagiu, e demora mais de um episódio para pelos menos descobrirmos o desenrolar das ações. Tudo isso culmina na utilização risível do clima de “não confie em ninguém”, tão difundido pelo marketing e que deveria ser central na obra, mas é possível contar nos dedos de uma única mão as sequências nas quais a habilidade de trocar de forma dos Skrulls foi utilizada para (tentar) ludibriar o espectador.
A verdade é que o MCU vem se tornando especialista em causar euforia nos que tanto aguardam propostas diferentes da tão falada e desgastada “fórmula Marvel”, para depois transformar toda essa exaltação em desengano e frustração. Se nas impressões iniciais, cogitamos que “Invasão Secreta” poderia ser para o MCU o que “Andor” foi para “Star Wars” — e tinha potencial para isto —, agora ficou claro que testemunhamos algo muito mais próximo do “Episódio IX” da franquia estelar.