Afiado, mas ainda assim leve, o novo trabalho de Greta Gerwig é a prova definitiva de que a cineasta consegue fazer grandes filmes de estúdio com a mesma destreza que um filme independente.
Na Hollywood atual, manter a consistência é algo complicado. É difícil escapar do chamado das grandes franquias, que raramente têm em mente algo mais do que se autopromover ou apenas fazer caixa. Não raro um cineasta de renome assume algum projeto do gênero apenas para entregar um enlatado sem alma, mas com potencial de bilheteria. Quando Greta Gerwig assumiu o comando de “Barbie“, criou-se um clima de animação, ainda que com um pé atrás — uma cineasta autêntica como ela assumindo uma marca tão consolidada era um risco para as duas partes. Pois ela nos surpreende novamente e mantém um histórico perfeito em sua carreira como diretora.
Praticamente não há mulher adulta que não tenha tido contato com uma Barbie na infância. Nas últimas décadas a concorrência pode até ter aumentado, mas isso é apenas por ela ter aberto caminho no mercado muito antes. Com o tempo, a boneca passou a mostrar para meninas que elas poderiam ser o que quisessem, de médicas a presidentes — e todas elas moram na Barbielândia de Greta Gerwig. A vida é perfeita nesse oásis de imaginação e tons pastéis até que um dia a heroína da história, a Barbie Estereotípica, pensa em morte no meio de uma festa. No dia seguinte, a torrada do café da manhã queima, a água do chuveiro está pelando e, para piorar, seu pé fica chato. O que houve, Barbie?
A jornada que a busca por essa resposta inicia é algo tão envolvente quanto surpreendente, e toma dimensões cada vez mais profundas graças às atuações envolventes de Margot Robbie e Ryan Gosling, que formam a dupla dinâmica irresistível Barbie Estereotípica e Ken. A bem da verdade, não há uma única Barbie que não conseguria carregar o filme sozinha. Mas Robbie transmite carisma e naturalidade, seja na Barbielândia ou no Mundo Real, onde ela se depara com uma realidade capaz de fazer até a Barbie mais alegre ter ataques de ansiedade. Mesmo assim, sobra espaço para que cada representação da boneca tenha seu momento de glória, da hilária Barbie Esquisita de Kate McKinnon à excelente Barbie Presidente de Issa Rae. E os Kens também.
Mas estamos falando de Greta Gerwig, conhecida não apenas pelo calor emocional de seus trabalhos, mas também pela visibilidade que ela dá à condição feminina atualmente. A cineasta tratou do tema em filmes como “Lady Bird – A Hora de Voar” e “Adoráveis Mulheres” com um olhar moderno, e em “Barbie” não seria diferente, o que o torna perfeito para todas as mulheres que cresceram brincando com a boneca. O texto de Gerwig e Noah Baumbach é afiadíssimo, e culmina em um monólogo devastador de America Ferrera, tocando também os homens que se dispuserem a sair da caixinha em que foram colocados quando meninos, pois há tantos Kens quanto Barbies na Barbielândia — rosa e azul funcionam tanto para Barbies, quanto para Kens, algo que o design de produção deixa evidente até no Mundo Real.
Pouco antes do lançamento de “Barbie” no cinemas, Gerwig confessou em entrevistas o desejo de assumir projetos cada vez maiores. Para quem ficou conhecida como “musa do mumblecore”, essa ambição é um rompimento com o que se esperava dela enquanto diretora. Mas não há artista melhor que ela para reimaginar o conceito de blockbuster, e isso está mais do que claro em “Barbie”. Em menos de duas horas de filme, não há como não rir e se emocionar diversas vezes, seja pela nostalgia, pelo humor autorreferente ou pelo enredo cativante.