Focada em entregar uma boa história em vez de um simples apanhado de easter eggs, a série criada por Tony Gilroy se consagra facilmente como o melhor produto de "Star Wars" desde "Os Últimos Jedi".
Desde meados dos anos 2000, especulava-se sobre uma possível série de “Star Wars” ambientada nos anos do Império Galáctico (entre “A Vingança dos Sith” e “Uma Nova Esperança“). O tempo foi passando, a Lucasfilm eventualmente acabou adquirida pela Disney e a Força deu outros rumos à franquia. Mas a sede dos fãs por algo que preenchesse essa lacuna permaneceu, sendo devidamente saciada apenas agora, com a chegada de “Andor” ao Disney Plus. Só que essa não é a tal série especulada lá atrás; ela é muito melhor.
Talvez o fato mais interessante a respeito de “Andor” é que ela não é uma série de suma necessidade para se aproveitar “Star Wars“. Seu objetivo não é preencher lacunas ou acompanhar feitos heróicos de algum Skywalker, como fazem praticamente todas as outras propriedades da franquia. Ela apenas olha para quem a saga nunca olhou antes: as pessoas comuns. Para isso, ela utiliza Cassian Andor, o espião rebelde interpretado por Diego Luna em “Rogue One: Uma História Star Wars“, como avatar em uma história sobre o embate entre autoritarismo e liberdade. Não há Jedi, não há Força. Em “Andor”, a luta acontece o tempo todo e se faz presente até nos menores atos.
O embrião da série surgiu ainda enquanto “Rogue One” era produzido. Recrutado para “consertar” o terceiro ato do filme, Tony Gilroy, que afirma sem medo nunca ter sido fã de “Star Wars“, entrou em contato com a galáxia muito, muito distante e viu uma oportunidade de usá-la como pano de fundo para uma história carregada de nuances, e que navega a zona cinza da névoa da guerra sem precisar de piloto automático. Para criar a trama complexa de “Andor”, Tony teve ajuda de seu irmão, Dan Gilroy (“O Abutre“), e Beau Willimon (“House of Cards“) como roteiristas, ambos fãs de diálogos carregados.
O diálogo, aliás, é justamente o que torna “Andor” algo diferente do restante de “Star Wars“. Temas como os interesses por trás das guerras e radicalização de cidadãos comuns já estiveram presentes em outros títulos da franquia, como “Os Últimos Jedi” e “Star Wars Rebels“, mas nunca com a profundidade que Gilroy arrisca em pleno Disney Plus. Como não poderia deixar de ser, parte considerável da comunidade de fãs não vê em “Andor” muito apelo, justamente por esse tipo de abordagem exigir o foco maior em diálogos densos e um ritmo lento para o desenvolvimento da trama.
Apesar de a série ter no título seu sobrenome, Cassian é apenas uma peça de um quebra cabeça que, ao ficar completo, irá formar a heroica figura da Aliança Rebelde. Diversos novos personagens são apresentados, cada um com motivos pessoais e, honestamente, até razoáveis para fazerem o que fazem. Talvez um dos melhores exemplos disso seja a tenente Dedra Meero, do Bureau de Segurança Imperial (uma espécie de CIA do Império), que luta contra uma estrutura machista que joga constante contra ela, baseada no medo de seus superiores. A simpatia que Dedra desperta é inevitável não apenas por sua situação, mas também pelo trabalho de Denise Gough com a personagem, que alterna a satisfação em suas vitórias com a frustração com o sistema, e nos lembra constantemente que, apesar de tudo, Dedra continua sendo uma fascista convicta, trabalhando para a perpetuação de um regime igualmente fascista.
Outro personagem tão instigante quanto é Luthen Rael, através do qual Stellan Skarsgard entrega talvez um dos monólogos mais brilhantes de toda saga, ao falar sobre tudo o que um líder sacrifica em prol de uma rebelião. É fácil imaginar o chefe e articulador da Aliança Rebelde como uma figura pura, mas as rachaduras no personagem são exatamente por onde podemos enxergar suas contradições. Pode até haver lado bom e ruim em uma guerra, mas o fato é que, apenas por lutar, ambos já perderam, e é isso que Luthen representa. Sua contrapartida vem na figura da senadora Mon Mothma, novamente vivida por Genevieve O’Reilly. Determinada a evitar o conflito inicialmente, parte o coração ver que o que a levou a se tornar a líder de fato da Rebelião não foi exatamente seu idealismo, mas a derrocada de sua família, forçando-a a sacrificar sua integridade por um futuro que eles mesmos não conseguem reconhecer como melhor.
O grande ponto alto, no entanto, é a jornada do próprio Cassian. Ao longo dos doze episódios da primeira temporada, acompanhamos sua progressão de trambiqueiro no planeta industrial de Ferrix até finalmente compreender o lugar que alguém como ele pode ocupar em uma galáxia que vive com medo de quem está no poder. A figura focada e determinada que conhecemos em “Rogue One“, na verdade, é forjada apenas após muito sofrimento, fazendo de tudo um pouco antes de tornar-se propriamente um rebelde. Para coroar, o tempo todo sua trajetória tem como espelho distorcido a de Syril Karn, personagem de Kyle Soller, que simboliza o mesmo tipo de homem comum, mas um que se ampara em ideais de ordem e rigidez para disfarçar sua própria amargura.
Quem vinha esperando longas sequências de ação recheadas de naves e explosões, naturalmente ficará um pouco decepcionado — ainda que, quando lança mão desses recursos clássicos de “Star Wars“, “Andor” o faça melhor até mesmo que “The Mandalorian” e boa parte dos filmes. A grande questão é que, aqui, esse não é o foco, e raramente é utilizado como o grande mecanismo de avanço narrativo que é nos outros produtos da franquia. Em vez disso, a série utiliza as próprias motivações dos personagens como elemento que gera tensão para levar a história adiante. Junto a isso, “Andor” mantém sua lealdade a “Star Wars” ao povoar a tela de detalhes inusitados, de alienígenas estranhos e comidas exóticas, à arquitetura e costumes dos planetas pelos quais viajamos. É dessa forma que uma galáxia já grande se expande ainda mais.
Claro, ninguém imaginaria de início que a história da Aliança Rebelde pudesse ser contada de forma tão pé no chão quanto “Andor” faz. Ninguém esperava que aquela série especulada décadas atrás, um projeto totalmente diferente e à parte deste, o faria dessa forma. Dado o histórico de “Star Wars” e a constante infantilização de seu público, é natural que a série desperte controvérsias, afinal, não há o heroísmo típico e dualista que convencionou-se esperar de histórias como essa.
O trunfo de “Andor”, portanto, reside justamente na ousadia da narrativa em apontar coisas que deveriam ser óbvias para quem vive nessa galáxia muito, muito distante há tanto tempo: não há preto e branco em uma guerra, muito menos em uma contra um regime fascista autoritário. Por mais legal que seja acompanhar o idealismo Jedi, eles são apenas uma pequena parte das guerras nas estrelas; a maioria dos que lutam são gente como eu e você.