Sentida em cada um dos 161 minutos do filme, a falta de Chadwick Boseman é transformada em força motriz de um belo conto sobre luto e resistência.
Quando alguém é maior que si próprio, uma morte deixa marcas em quem permanece. Algumas profundas, algumas que nunca serão propriamente superadas, mas com as quais precisamos aprender a conviver. Foi o caso de Chadwick Boseman, o eterno rei T’Challa do universo Marvel. Quando o ator morreu, vítima de um câncer silencioso em 2020, o mundo foi pego de surpresa pela perda de alguém que era, de todas as formas possíveis, maior que si próprio. Sua perda não foi apenas a de um artista, mas a de um ícone em prol de uma luta de séculos, que conquistou um justo espaço na maior franquia do cinema atual na forma do Pantera Negra.
Ao lembrar disso tudo, o simples fato de Ryan Coogler ter aceitado o desafio de fazer “Wakanda Para Sempre” é de uma coragem louvável. A montanha a escalar não era apenas a de homenagear e incorporar o luto por Boseman à própria narrativa, mas também dar uma sequência digna ao excelente “Pantera Negra“, que até indicado a Oscar de Melhor Filme foi. Pois Coogler conseguiu, entregando um longa que não só emociona, como também entende seu papel além das telonas.
Por definição, o Pantera Negra, enquanto personagem, é político. Não é preciso ir além do próprio nome para chegar a essa conclusão. Ou seja, é impossível fazer um filme sobre o herói, seja quem for dentro do traje, sem tocar em pautas sociais indigestas para quem em geral compõe o público de longas de super-heróis, principalmente racismo. Em tempos de esperança renovada como os atuais, é preciso não perder de vista a quantidade de barreiras já rompidas para que possamos olhar adiante como sociedade dispostos a superar muitas mais. Assistir “Wakanda Para Sempre” e não pensar nisso, nem por um segundo sequer, pode ser sintoma de muitas doenças atuais, menos de uma obra rasa.
Logo de início, o baque da perda de Chadwick Boseman nos é relembrado, desde a vinheta especial da Marvel em sua homenagem, até o tocante luto expresso por toda Wakanda pela morte de seu rei. Tão importante quanto a tristeza pela perda é celebrar um legado como o deixado por T’Challa: um povo unido e consciente de seu papel no mundo. Cabe aos que ficam, principalmente sua mãe, a rainha Ramonda (Angela Bassett), e a princesa Shuri (Letitia Wright) dar sequência a esse sentimento.
Seria fácil contar uma história baseada apenas em luto, mas isso já foi feito antes pela Marvel e, verdade seja dita, não é o que se espera de um filme do Pantera Negra — e Ryan Coogler sabe bem disso. Se no original a luta de Killmonger (Michael B. Jordan) contra a exploração do povo negro mundo afora era parte integral do conflito que T’Challa teve que lidar (e até incorporar), agora um novo vilão aparece com motivações semelhantes, e igualmente justas. O Namor de Tenoch Huerta não é apenas carismático e sedutor, mas sua luta é algo com que todos que estudaram um pouco da nossa própria história enquanto país colonizado irão se identificar.
O ponto alto, contudo, fica por conta do entrosamento e poder puro da dupla Angela Bassett e Letitia Wright. Formando o núcleo duro do filme, tanto em termos de performance, quanto em foco narrativo, é impossível não se comover com a jornada de luto de suas personagens. Afinal, se para toda Wakanda um rei faz falta, para uma mãe e uma irmã, o vazio deixado por T’Challa é ainda maior. E, naturalmente, ambas encaram a situação de formas diferentes. Enquanto Ramonda assume a posição de líder e novo rosto do país no cenário internacional, Shuri somatiza a dor da perda do irmão, culpando-se por não ter conseguido utilizar sua genialidade para salvar mais essa vida — uma dentre tantas outras que ela já ajudou a proteger no universo Marvel.
O grande pecado de “Wakanda Para Sempre” é justamente achar que precisa de mais que a dupla principal para preencher o espaço de Boseman. Com isso, o enredo se estende de forma notadamente artificial em diversos momentos, principalmente em relação à novata Riri Williams (Dominique Thorne). Seu posto como herdeira de Tony Stark (Robert Downey Jr.) é referenciado em mais de uma cena, com paralelos sutis ao Homem de Ferro, mas sua personagem lembra, principalmente, o Homem-Aranha de Tom Holland em termos de postura e humor. Sua dinâmica com Shuri é um alívio cômico bem-vindo em diversos momentos, ambas com personalidades jovens e espirituosas, mas não o suficiente para justificar todo um arco.
Por outro lado, as presenças de Okoye (Danai Gurira), Nakia (Lupita Nyong’o) e M’Baku (Winston Duke) eram mais do que esperadas, mas também necessárias para a compreensão total da dor coletiva que o povo de Wakanda enfrenta. Mais que isso, eles também representam o legado de união de T’Challa. Entre este grupo de conhecidos, a dinâmica é impecável, e se estende para a novata Anika, ainda que incluir uma atriz do calibre de Michaela Coel e mantê-la com um tempo de tela tão reduzido seja um pecado.
Nada disso tira o brilho de “Wakanda Para Sempre”, pelo contrário. O próprio título já indica que sua história é maior do que a de um homem só e o que ele deixa para trás — é sobre um povo. O Pantera Negra pode até ser o protetor de Wakanda, mas um país só é tão bom quanto sua população, e as diversas caras, conhecidas e novas, que dão identidade ao filme provam isso repetidamente. Se Chadwick Boseman e T’Challa fazem falta (e como fazem), a força de seu legado é ainda maior do que o vazio que eles deixam.