Embora encontre força na imoralidade dos laços que unem o casal protagonista, longa peca pela timidez pouco visceral de Luca Guadagnino
São potentes as narrativas que buscam o amor como conexão sobressalente às mais avessas condições do mundo. As histórias que traçam laços improváveis, justificados por características exóticas e capazes de subverter quaisquer barreiras. Por mais saturados que esses dizeres possam soar, a busca por pertencimento seguirá impulsionando digressões a seu respeito, constantemente autorizadas a encontrar novas roupagens de estruturação. Visando uma dissecação até literal dos âmbitos que a paixão pode assumir sobre o indivíduo — e abrangendo assim o imortal e platoniano vínculo entre os campos mentais e corporais do indivíduo humano —, Luca Guadagnino faz do seu “Até Os Ossos” uma investigação biológica desse vínculo, que mesmo com uma certa falta de ousadia consegue deixar algumas cicatrizes de mordida pelo caminho.
Assombrada por um instinto que é incapaz de controlar, a jovem Maren Yearly (Taylor Russell) embarca em uma jornada em busca de suas raízes após ceder a um novo ataque canibal. No processo, ela encontra o misterioso Lee (Timothée Chalamet), que demonstra padecer do mesmo problema. Juntos, eles percebem que a aceitação deve se sobressair à compreensão de sua verdadeira essência, e buscam por formas que autorizem a manutenção de seu relacionamento.
Munido contra explicações moralistas, chama a atenção a forma como o longa não se debruça perante justificativas para as características mais chamativas de seus protagonistas, aceitando-as como causa e combustível para a bonita relação que surgirá. Para além disso, é hábil a maneira como o diretor associa o canibalismo a diferentes estigmas, escolhendo à abstração como grande reveladora da universalidade de seu discurso.
Podendo estar voltada à sexualidade, ao condicionamento fisiológico desde à nascença, à raça ou qualquer paradigma de classificação social que abra margens a uma indevida hierarquização, Guadagnino abraça a natureza destrutiva da dupla como uma iluminada doença, que por mais infectante que possa parecer para os demais, é justamente o que autoriza a descoberta de um lugar de mundo na companhia de um e do outro.
Nesse sentido, se destacam as passagens mais viscerais, que batalham para serem exibidas em uma decupagem que oscila entre planos mais abertos e pesados, reinvindicando para si o direito de vir à tona após anos de uma repressão autoimposta. É como se o horror inicial provocado pelos ataques mais literais fossem gradualmente subvertidos como uma catarse instintiva de Maren e Lee, que se por um lado tentam conter esses traços, por outro serão forçados a reconhecer a urgência de se conectarem com a sua verdadeira face.
Essas características ficam bem expressas em passagens como a da confraternização inicial, em que Maren traduz a vontade de beijar uma colega na devoração de seu dedo mindinho, e bem como, entre outros exemplos, no segmento próximo ao final, em que a libertação total do amor que a impulsiona ao lado de Lee conduz à sequência mais sangrenta de todo o projeto. Apesar dessas colocações, entretanto, a filiação do desenvolvimento da narrativa a um modelo bastante convencional acaba reduzindo o seu potencial mais cru, higienizando não apenas a evolução das duas personagens — que, apesar de certamente elaborarem um código moral, poderiam ceder a disrupção do mesmo em alguns dos momentos mais calorosamente afetivos —, mas o avançar geral da narrativa.
Isso acaba minimizando alguns dos possíveis desmembramentos da tese central, especialmente no que diz respeito ao consumo metafórico que é concebido, mas nunca totalmente concretizado pelo roteiro. De que forma essa condição crônica dialoga, para além de estigmas mais concretos e sustentados por problemáticas bastante literais, com uma metamorfose mais velada no encontro entre personalidades.
Embora tenha consciência de sua relação com os intervalos entre a imagem concreta em sua instância mais clara, e a esfera transcendental residente por detrás da mesma — mas que, por outro lado, é bem articulada no comovente desfecho de transmutação de uma das personagens para além de seu envoltório físico, que passa a existir nas marcas deixadas em seu parceiro —, é infeliz que a obra nunca totalmente alcance o seu potencial.
Ainda assim, entretanto, tem-se aqui um comovente conto sobre as disrupções que o amor incandescente pode provocar, sábio por demonstrar que, embora pareçam perigosos os desvios que estes venham a gerar sobre a expressão do corpo e do organismo, devemos autorizá-las ao invés de investir em seu combate.