Em sua estreia na direção, Charlotte Wells se desvencilha da necessidade de contar uma história para priorizar os toques e perspectivas da memória afetiva que apenas o cinema é capaz de redimensionar.
Apesar do seu ponto de partida extremamente comum, “Aftersun” encontra sua força na forma como investe em uma concretização tátil de seus enquadramentos. A justificativa por detrás da dinâmica entre os protagonistas pode até surgir de um procedimento clássico com início, meio e fim, mas não demora muito para a obra de Charlotte Wells se desvencilhar para dentro de seu atordoante e próprio universo sensorial.
As disgressões de Sophie (Frankie Coro) a respeito de uma antiga viagem de férias ao lado do pai (Paul Mescal) a desafiam a tentar separar a realidade e a fantasia, forçando-a a mergulhar em uma intensa experimentação de sentimentos do passado. Brincando com a própria natureza das imagens ali concebidas, em função de um pequeno gravador que a protagonista em sua versão criança traz consigo, tem-se uma emocionante jornada através de rastros do passado.
Apesar de alguns recursos de montagem didatizarem um pouco a experiência, a direção se destaca por sua primitividade na investigação dos planos, que impulsionam os movimentos de câmera pela lógica do desejo pelo imagético. Isso dita uma operação bastante alinhada à ânsia do olhar que, especialmente atribuída à pequena Sophie, preserva uma primeira instância de origem cinematográfica profundamente associada à busca pela compreensão e pelo desconhecido.
Nesse mesmo sentido, e pelo fato de se centralizar no relacionamento concreto entre duas personagens bem definidas — ainda que não saibamos quase nada sobre elas, levados a conhecê-las muito mais pelo modo como tateiam uns aos outros e as experiências do resort —, é interessante como a obra reconhece essa tentativa indulgente de controlar os laços transigentes de unificação entre duas figuras, concepção evidenciada especialmente pela câmera manuseada pela criança.
Até mesmo essa pluralidade de texturas visuais revelam os desgastes gerados por esse processo falho, que prioriza a reciclagem de situações semelhantes — encantado pelas soluções que encontra na unificação gráfica entre planos, o que poderia reduzir a experiência ao espetáculo mas acaba corroborando para o aprisionamento cíclico do estado psicológico da protagonista — em detrimento de um avanço bem definido entre blocos.
É como se o filme se permitisse aproveitar esse oásis de uma memória coletiva, se deixando infectar pelos espaços vazios que assombram esse processo, mas sem abrir mão da sua essência — esta pouco preocupada em realmente identificar as verdades por detrás daquela relação paternal, mas sim em extrair as impressões inconscientes deixadas pelas sombras (tal como os brilhantes planos no quarto escurecido), pelos toques e pela maleabilidade dos materiais com os quais interagem, como as ondas do mar ou a porosidade da areia.
Tem-se assim um lindo experimento de rememoração imagética de uma persona passada, figura essa que se fundamenta não apenas em nossas raízes mas na maneira como nos impulsiona a construir o futuro a partir de nossos mergulhos ao que já atravessamos. Mergulhos estes comumente fadados a se converterem em ciclos de retorno eterno, tal como o assustador plano final, cujo movimentar da câmera imprime a incapacidade de se fugir desses exercícios de digressão mental.
Tudo isso torna “Aftersun” uma sinfonia tátil de desgaste emocional, tão motivada pela força da relação entre um pai e uma filha quanto o é movido pelo ímpeto de curiosidade que leva um recém-nascido a capturar o incompreensível com o olhar e buscá-lo com o inocente apontar de um polegar.