Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 11 de novembro de 2022

Armageddon Time (2022): coming of age de impessoalidade comovente

Misturando o clima soturno das incertezas culturais da época que retrata e a ingenuidade de jovens pressionados, James Gray entrega um coming of age digno de sua sensibilidade.

Em seu projeto que talvez dialogue mais diretamente com as suas raízes pessoais, James Gray relativiza a potência do fazer artístico como manifestação revolucionária. “Armageddon Time” é uma obra que, perpassando desde a subversão de um discurso social mais direto até a contemplação soturna do aprisionamento pela imagem, celebra a importância da vivência e do seu compartilhar.

Consciente do ruir crescente que muitas vezes acomete a expressão cultural, o diretor encontra em sua versão juvenil, o sufocado Paul Graff (Michael Banks Repeta) — sobrenome que por si só já anuncia o vazio que as suas raízes são forçadas a enfrentar —, uma representação bastante clara dos dilemas que moldaram a sua assinatura como o é hoje. O filme acompanha um período do crescimento do jovem ao lado de seu melhor amigo, Johnny (Jaylin Webb), traçando as tentativas juvenis da dupla em sobreviver a uma época carregada de pressões familiares e transformações culturais desafiadoras.

Nesse âmbito, cabe destacar a sua forte afiliação ao cinema clássico, cuja proximidade determinou a criação de narrativas que, mesmo ancoradas em pontos temáticos popularizados, se destacam em sua condução. Conforme precedido pelo próprio título — e que homenageia a canção homônima de Willie Williams — a destruição iminente do homem contra si mesmo se dispersa por todos os cantos.

Dissociado dos propósitos que lhe são impostos por seus professores ou pais, por exemplo, é curioso como Paul tenta existir em meio à espetacularização de suas dores e a absorção forçada de propósitos que não lhe dizem respeito. Seja pela cacofonia, pela mitigação dos objetos culturais em sua força primordial ou pela inexistência de um contra-ataque que não se realize de modo espetacularizado, as fugas do garotos são marcadas por uma artificialização que aponta para o esvaziamento do meio contra si mesmo.

Essa essência dialoga profundamente com as teses mais superficiais que dizem respeito ao racismo, que no contraste entre os privilégio que Paul possui em detrimento de Johnny, revelam a incompletude das mensagens de superação na falsidade de seu “amplo alcance”, e à alienação pela perda gradual dos traços judaicos do protagonista.

Isso produz uma impessoalidade que se traduz habilmente na decupagem bastante tradicional de alguns segmentos, como os aplicados aos flashes de memória em que frases antigas, como as de seu doce avô (Anthony Hopkins), retornam para atormentar o garoto perdido em meio ao ebulir de vozes e manifestações. Nem por isso, contudo, a obra desmerece a ingenuidade de seu rosto central, seguindo por um caminho exatamente contrário. Apesar dessa atmosfera de corrupção, encanta a forma como Gray concede à experiência, em sua forma mais primordial, a salvação de sua persona “Graff”, deixando-a livre para viver e aproveitar, mergulhada em meio aos sintomas culturais dos Estados Unidos da década de 80.

“Armageddon Time” constitui assim um coming of age supostamente familiar, mas que se fortalece justamente na maneira como o seu protagonista, alienado ou não nesse processo, se alimenta da riqueza das explosões anunciadas pelo título para viver e escapar.

Davi Galantier Krasilchik
@davikrasilchik

Compartilhe