Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 26 de agosto de 2022

Não! Não Olhe! (2022): um espetáculo de perigosa sedução

Livrando-se de alguns vícios de roteiro redutores, Jordan Peele evolui na articulação entre imagens e o desconhecido em seu épico de terror.

Não há como negar a força que a imagem exerce sobre o nosso imaginário. Capaz de modelar a maneira como enxergamos o mundo, essas tentativas de capturar a realidade se aproveitam de desejos e impulsos internos que buscamos externalizar, guiando a maneira como nos relacionamos com aquilo que não conseguimos entender. É com esse ideal em mãos que Jordan Peele amplia o seu treinamento recente no gênero do terror, entregando aquela que talvez seja a sua obra que melhor articula a dimensão visual. Ambientado em um pacífico rancho do interior dos Estados Unidos, “Não! Não Olhe!” traz a história dos irmãos Haywood, dupla afastada anos antes que se reúne após a misteriosa morte de seu pai.

Acomodado em uma vida coadjuvante como criador de cavalos especializados em filmes de faroeste, o reencontro do monótono OJ (Daniel Kaluuya) com a expansiva Emerald (Keke Palmer) assume um rumo assustador quando ambos passam a testemunhar inexplicáveis desaparecimentos e manifestações vindas do céu. A captura em vídeo do possível fenômeno aparece então como uma improvável ponte para o reconhecimento que sempre buscaram.

Ciente da própria artificialização que o Cinema tanto pode produzir, o maior trunfo da direção de Peele em “Não! Não Olhe!” se encontra justamente no uso da necessidade nutrida pelo espetáculo como força de união de seus eixos narrativos. Seja a ânsia banal pela busca de um maior status ou um interesse mais obscuro na exploração do outro como entretenimento, o fascínio gerado pelo objeto desconhecido que vaga pelos ares se mostra mais ameaçador do que o próprio.

Sendo assim, merece destaque, primeiramente, a forma como a direção articula imageticamente a relação das personagens com o perigo testemunhado. Chama a atenção, por exemplo, a forma como as situações vão pincelando pouco a pouco a aparição da “criatura”, conquistando gradualmente a curiosidade do público que acaba convidado a performar aquilo que o filme tanto critica. 

Para tal também atuam grandiosos planos-sequência, que bem aplicam a falta de luz das cenas noturnas ao mesclar o inimigo com a vastidão dos campos abertos em que boa parte da ação acontece. Isso reconhece a força do espaço desconhecido como disparador de signos além da nossa compreensão para a justificativa de medos pessoais — e pontuando a sua inteligência de não resumir tudo ao monstro físico.

Indo além, tal aspecto ainda obriga a plateia a vasculhar cada plano em busca da aparição, que nem sempre é testemunhada. Isso converte aqueles que assistem em cúmplices do desejo de observar a obscuridade em questão, e que no âmbito do longa acaba se voltando contra os seus perpetuadores.

Em relação a esse princípio, é fundamental também em “Não! Não Olhe!” a presença de Jupe, personagem de Steven Yeun, que demonstra ter um faro apurado para a conversão de medos e tragédias em atrações lucrativas. Ambicioso, os close-ups que o registram são mais alguns exemplos da forma como Peele reforça o fator humano por detrás da ameaça sobrenatural, sempre insistindo na capacidade do inconsciente humano de criação de símbolos e priorizando a sugestão como um fator mais assustador do que a visualização literal em si.

Essa mesma lógica do anseio pela espetacularização se faz presente na trajetória dos irmãos Haywood. Embora faltem algumas particularidades que fundamentem uma separação mais específica da função narrativa dos dois no filme — que acaba por vezes sendo um tanto redundante —, é recompensador acompanhar a absorção de características heroicas típicas daqueles que cresceram assistindo nos faroestes de seus cavalos. É pontuada assim a crítica de teor social mais sutil já inserida pelo cineasta, o que também comprova a sua melhora na harmonização entre a forma e o conteúdo escrito no roteiro. 

Finalmente, momentos como o da chuva de sangue fortificam ainda mais essa discussão a respeito do poder imagético, que muitas vezes julgamos serem suficientes na resolução de conflitos mais subjetivos. A deturpação bastante literal das gotas de água, junto das quais são expelidos objetos pessoais deixados pelas vítimas do antagonista, é uma ótima metáfora para a maneira como tais signos muitas vezes tentam se sobrepor aos sujeitos que os criam.

Apesar das qualidades, faltam momentos de maior desconstrução do refinamento perfeito — e irreal — trazido por Hollywood, principalmente considerando que a idealização trazida pelo imagético é um dos principais pontos críticos da obra. Como um todo, “Não! Não Olhe!” estabelece interessantes relações entre o inconsciente humano e as imagens que este é capaz de produzir diante do desconhecido. Trazendo a direção de Jordan Peele mais afiada do ponto de vista visual, a obra traz momentos eletrizantes que vão fazer o espectador sair questionando o porquê do medo e da incompreensão serem tão atrativos.

Davi Galantier Krasilchik
@davikrasilchik

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