Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 10 de agosto de 2022

X — A Marca da Morte (2022): um brinde à pureza do slasher

Associando o debate entre moralismo e libertação à construção da imagem cinematográfica, o filme exalta os aspectos mais gráficos do slasher como uma emancipação em relação à intelectualidade pretensiosa que insiste em invalidar o terror.

A antecipação do desfecho oferecida pela sequência de abertura já fornece um ótimo vislumbre da experiência que se desdobrará em “X — A Marca da Morte“, um slasher moderno sobre a necessidade de não se lutar contra a sua própria natureza. O filme acompanha a jornada de um grupo de artistas amadores que viajam para uma cabana na expectativa de gravar um filme adulto que os tornem famosos. Quando a atmosfera sombria da locação escolhida passa a se tornar real e os seus donos passam a tramar a morte de seus visitantes, entretanto, a equipe se verá forçada a lutar pela própria vida. 

Partindo de um travelling in que desfaz a moldura interna que a porta de uma cabana imprime sobre, a direção de Ti West exibe a fisicalidade de corpos recém-esquartejados desde os minutos iniciais, antecipando desde então indícios da atração principal atribuída ao subgênero. A metalinguagem escondida por detrás desse primeiro plano, que atenta para o além da tela na forma como insere um quadro dentro de outro, pode até apontar para um novo exercício de subversão das batidas do terror, mas a vivacidade com a qual os massacres serão registrados no futuro ato final provarão o contrário.

Lembrado por seus fãs mais seletos pelo não tão conhecido “A Casa do Demônio”, filme que brinca com o espectador ao tentar a manutenção de uma atmosfera intensa justamente por uma subversão das expectativas baseada na “não-ação”, o cineasta em questão já construiu uma filmografia interessante. Ele perpassou desde o trash desenvolvido com baixos orçamentos até longas facilmente classificáveis diante da sina do terrível “pós-horror”, termo redutor que tenta diferenciar obras do tipo que buscariam trazer um teor mais “filosófico” daquelas que teriam como objetivo proporcionar um passageiro prazer escapista, determinando assim uma nova espécie de discriminação artística.

Por já ter trabalhado com diferentes visões, nesse sentido a experiência já adquirida permite ao diretor a construção de uma bela ode à esfera cinemática dos assassinos em série e das mortes ridiculamente exageradas, optando pela desconstrução dessa última classificação imprecisa em detrimento das narrativas comumente arruinadas por esta. Embora a sua autoconsciência até aponte, em certas passagens, para algum grau de uma intelectualidade autoindulgente, seria injusto colocar que a “X — A Marca da Morte” se considera, de forma arrogante, superior ao seu espectador.

Esse aspecto chega inclusive a ser extremamente irônico, considerando que a produtora do longa, A24, é lembrada por muitos como uma das maiores distribuidoras do terror “elevado”, entre os quais podemos enquadrar os aclamados Midsommar e A Bruxa, por exemplo, e se sustenta por algumas justificativas. A primeira delas se encontra na estilização com a qual algumas passagens são construídas, contrastando com os eventos visualmente menos afetados — e que, marcados por cores poucos saturadas e pouca profundidade nos usos de luz, tentam enganar a plateia temporariamente ao flertar com os critérios desse fazer realista mais recente. 

Ao assumir a dimensão fílmica da história sendo ali contada, momentos como o do primeiro assassinato — em que a luz transcende as leis naturais para atuar, tomada pela vermelhidão completa, como uma extensão da personagem retratada — compõem uma montagem de exaltação à imagem deslocada da realidade, exaltando essa possibilidade da sétima arte conjuntamente à libertação que tal fuga oferece às personagens assassinas. Em relação a essas últimas, reside aí justamente mais uma de suas justificativas. Se por um lado aqueles que compõem a equipe de gravações flertam ativamente com os clichês do slasher, não apenas pela forma como se enquadram em seus personagens típicos, mas especialmente pelas piadas nas quais revelam conhecimento a respeito de suas fórmulas, a dupla que chefia o terreno, um casal de idosos, é enquadrada no campo completamente oposto.

Se o subgênero é reconhecido, entre outros fatores, pela exibição de jovens atraentes e corpos viris, a idade que determina a deteriorição da aparência dos assassinos tenta afastar-lhes da experiência sendo ali articulada, os proibindo de coexistir com aqueles que procuram justamente concretizar uma filmagem de culto à beleza física. Contrapondo assim algum grau de moralismo e tentação, mas sem jamais se ausentar da discussão proposta acerca do cinema e seu próprio formato, é interessante acompanhar a forma como a resistência da dupla de idosos, que busca também exercer esse direito à imagem, aproxima a direção do formato em sua forma mais pura, livrando a obra do puritanismo pretensioso que tem arruinado produções com grande potencial.

Não é por acaso, por exemplo, que o longa adentra o seu ato mais explosivo logo após a morte do diretor do filme pornográfico, um jovem sem quaisquer traços de autoralidade e que insiste em dizer que está realizando um “pornô filmado como cinema de verdade”. Essa harmonização entre conteúdo e forma, que será completamente alcançada na fuga de Maxine (Mia Goth) — a única integrante do grupo com humildade o suficiente para se reconhecer como um “símbolo sexual” — acaba se revelando um dos principais fios condutores do filme. É justamente o último que permite, entre outros fatores, a suspensão constante de expectativas da parte do espectador, desafiado a atravessar um labirinto que se divide entre o desarmamento de ferramentas banalizadas pelo cinema de terror e a valorização desses mesmos. 

Finalmente, vale destaque ainda a relação que “X — A Marca da Morte” estabelece — como bem antecipa o trocadilho, em seu título, com a classificação indicativa — entre as brutalidades performadas, que de forma avessa atuam como uma maneira de emancipação, e os atos sexuais ali retratados, que vão se ressignificando ao variar desde à ação pura e mecânica, próxima do consumo desenfreado e esvaziado, ao reconhecimento da necessidade de naturalização.

Tem-se assim um slasher bastante curioso que, embora visivelmente influenciado por grandes franquias como a famosa “Pânico”, consegue sabiamente se sustentar não pela rejeição às batidas que recicla, mas justamente pela exaltação sincera das mesmas.

Davi Galantier Krasilchik
@davikrasilchik

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