Com roteiros preguiçosos e arrastados, série encontra a salvação na redução do número de episódios por temporada e em um elenco que abraçou a proposta brega sem hesitação.
A figura de satanás permeia o imaginário da humanidade há séculos. Poder concentrar o mal em um único ser é terreno fértil para uma infinidade de histórias, com várias brotando em obras de ficção desde que a escrita existe. Na renomada saga de quadrinhos Sandman, Neil Gaiman, Sam Kieth e Mike Dringenberg criaram sua versão do anjo caído, que acabou ganhando sua própria revista no extinto selo Vertigo, da DC. Estas HQs foram a inspiração para a criação da série “Lucifer”, que chegou a seu fim em setembro de 2021 após seis temporadas. Importante frisar que esta não foi uma adaptação direta do personagem de Gaiman, mas apenas uma desculpa para a imaginação de Tom Kapinos desenvolver sua própria versão do Senhor do Inferno.
Na série, Lucifer (Tom Ellis) se cansa do tédio de governar o inferno por milênios, abandona o trono e vai morar em Los Angeles, onde é dono de uma boate. Ele logo conhece a detetive Chloe (Lauren German) quando se vê no meio da investigação de um assassinato, resultando na desculpa simplória que o coloca como consultor da polícia local para auxiliá-la. Assim nasceu uma série procedural que sofreu de todos os males do estilo: exageradamente repetitiva com roteiros preguiçosos que não escondem a óbvia necessidade de enrolação das tramas. É embasbacante a quantidade de vezes em que o espectador se pega na indagação de porque diabos as pessoas não conseguem fazer uma simples pergunta direta, resolvendo situações em segundos.
As três primeiras temporadas seguem essa fraca cartilha. Procedurais costumam ter a “missão da vez” (no caso, um assassinato diferente que precisa ser resolvido a cada episódio) com leves menções aos arcos emocionais dos personagens que se desenvolvem por trás desses crimes. Porém, “Lucifer” fez péssimo uso desse formato, onde as tramas pessoais só andavam mesmo nos primeiros e últimos episódios de cada temporada, resultando na tediosa sensação de estar acompanhando vinte episódios apenas como uma longa e enfadonha espera para que o season finale chegue logo e algo relevante, de fato, aconteça.
A série era produzida pela Fox e chegou a ser cancelada após a terceira temporada, mas a Netflix a adquiriu e produziu duas novas. Com a boa recepção, encomendou a sexta e última. “Lucifer” pode não ter sido uma grande série, mas tem uma leal e forte base de fãs, cujo barulho chamou a atenção da gigante do streaming. E foi nessa transição de produtoras que a série teve uma notável melhoria em sua qualidade. Deixando os “casos da vez” em segundo plano e com uma bem-vinda redução no número de episódios (apenas 10, contra os 26 da terceira), a quarta temporada foi uma lufada de ar fresco. Cada capítulo trazia elementos importantes, a trama se movia, e os personagens, finalmente, pareciam avançar em seus arcos.
O apelo do protagonista não vinha por ser celestial, mas sim dos seus sentimentos malresolvidos em relação ao pai, por quem se sentia abandonado e injustiçado. Tais sensações apareciam em pequenos momentos onde ele extravasava sua frustração sobre como era tratado pela humanidade, como a fonte de todo mal, sendo que ele apenas pune os malvados, nunca os leva a cometer atos vis.
Desde o início, Lucifer tem sessões com a terapeuta Linda (Rachael Harris), que sempre terminavam com ela tentando dar uma luz sobre as emoções de seu paciente. E ele sempre interpretava tudo errado. Esse artifício foi utilizado até a exaustão, e sempre de maneira parca, caindo na crítica de que bastavam duas palavras para resolver uma situação, mas com roteiros lânguidos que não conseguiam gerar contextos onde fosse compreensível que uma simples frase não fosse dita. É na primeira temporada da Netflix que as sessões realmente começam a surtir efeito, nas quais Lucifer evolui psicologicamente de maneira palpável. Cenas há muito alardeadas finalmente acontecem, e a dupla principal, enfim, encara a afeição que tem um pelo outro. Até a mitologia celestial começa a ter maior papel nas tramas.
No que diz respeito à abordagem do psicológico dos personagens, a série apresentou um elemento interessante. Anjos tem corpos que podem, usando o termo apresentado, se “autoatualizar”. Lucifer ficava vulnerável fisicamente perto de Chloe pela forma como se sentia perto dela, não por magia celestial misteriosa. Ele e seu irmão Amenadiel (D. B. Woodside) tiveram momentos em que não conseguiam abrir suas asas por inseguranças sobre si mesmos, e até a aparência demoníaca do protagonista decorria de sua autopercepção. Mesmo bastante mal-escritos e cheios de inconsistências, os roteiros conseguiam alguns momentos de triunfo.
A série também ganha pontos por se aventurar em alguns poucos episódios fora da caixa, como um de estética noir, um musical e até um desenho animado. Bem feitos? Não mesmo (o episódio onde cantam e dançam é um festival de vergonha alheia que provavelmente foi utilizado para torturar almas penadas no inferno), mas houve pelo menos um esforço criativo. Também cabem elogios quando a série aborda temas vitais para a sociedade ocidental da primeira metade do século XXI, como racismo na força policial, relacionamentos tóxicos e machismo. Até a pansexualidade de Lucifer ser tratada de forma natural, embora tímida, é algo digno de nota. É pouco e narrativamente ruim, mas levar seu público a ponderar sobre o que realmente é maléfico é louvável.
Se algo desta série definitivamente conquistou fãs, certamente foi o seu elenco. Abraçando a proposta galhofada, todos parecem até se divertir com a ruindade do texto e possuem ótima química. É um time que merece elogios por criar personagens tão cativantes e adoráveis com um material tão pobre para ser trabalhado. Ainda assim, o grande destaque é Tom Ellis. Desde o início, ele carrega uma aura de elegância e charme com um carisma que conquista facilmente, consegue ser divertido em sua arrogância, mas deixa transparecer honestidade, ingenuidade e fragilidade. Vê-lo atingir marcos em seu tratamento psicológico é catártico para ambos personagem e espectador, que sentem que seu protagonista está, de fato, evoluindo.
Terapia, aliás, é o ciclo que se fecha de maneira singela, mas bela no arco de Lucifer ao final da série. Testemunhar sua jornada até conseguir abraçar sua verdadeira vocação é algo que emociona, com um desfecho surpreendentemente tocante para uma série de qualidade tão rasa. Um bom final melhora a impressão do espectador da obra como um todo, e é o que acontece aqui.
A série foi mal-escrita, arrastada, narrativamente pobre, e com forçadas de barras convenientes demais para fazer algumas histórias andarem; sem contar que certas tramas foram apresentadas e abandonadas sem a menor hesitação ou explicação. Entretanto, com um elenco que não teve receio de abraçar a breguice, uma notável melhora na sua segunda metade e um ator principal excelente, conquistou fãs e não falhou em deixar suas mensagens sobre autoaceitação, perdão e compaixão, além de exaltar a importância de terapia na vida de qualquer um. “Lucifer” não será lembrada por prêmios (só ganhou dois, ambos para Ellis), mas o tinhoso mais carismático das telas, definitivamente, conquistou almas.