Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 23 de março de 2022

Lamb (MUBI, 2021): fábula de terror intimista

Terror folclórico estrelado por Noomi Rapace é uma experiência cinematográfica intrigante e peculiar, tal qual sua premissa.

“Que p*rra é essa?”, questiona um dos personagens. Mas à medida que o filme ganha ares cada vez mais estranhos, é o público quem começa a fazer a mesma pergunta. Dirigido pelo estreante Valdimar Jóhannsson e corroteirizado pelo escritor, poeta e compositor islandês Sjón, “Lamb”, disponível na MUBI, é uma fábula soturna que utiliza elementos do terror rural e folclórico para tecer uma trama alegórica envolta em luto, cuja premissa explora, entre outras temáticas, a maternidade e a relação homem-natureza.

Ambientada em uma fazenda remota nos confins da Islândia, a história acompanha Maria (Noomi Rapace) e Ingvar (Hilmir Snær Guðnason), um casal de criadores de ovelhas que, depois de ajudar a dar à luz a um estranho híbrido humano-cordeiro, decidem adotar o recém-nascido e criá-lo como sua filha, dando-lhe o nome de Ada. No entanto, marido e mulher terão problemas com a mãe ovelha de Ada e a súbita chegada do irmão de Ingvar, Pétur (Björn Hlynur Haraldsson), mas, ambos estão dispostos a fazer o que for preciso para proteger o mais novo membro da família.

Impondo um ritmo lento e fazendo pouco uso do diálogo, o enredo gradualmente vai construindo uma atmosfera inquietante e imersiva, capaz de angustiar apesar das sutilezas do roteiro que, notavelmente, sugere uma constante sensação de perigo que se intensifica conforme a trama avança e o passado dos personagens é mais aprofundado. Ao mesmo tempo, há também uma comedida dose de humor mórbido que estranhamente se encaixa como uma luva com a concepção de Jóhannsoon.

Assim como outros expoentes do gênero, como “A Bruxa” de Robert Eggers e “Midsommar” de Ari Aster, a verdadeira ameaça está na essência humana e nas circunstâncias em que os personagens são forçados a lidar com sentimentos que sempre assombraram nossa espécie, como culpa e luto. Portanto, os espectadores cujas expectativas anseiam por recursos convencionais como jumpscare, gore ou um plot twist ficarão desapontados. Em vez disso, a narrativa opta por seguir uma linha bem mais contida, visando explorar o desejo mais íntimo dos protagonistas e, pouco a pouco, subvertê-lo em seu pior trauma, ainda que disfarçado de milagre.

No papel de um casal em luto, Snær Guðnason e Rapace, mais conhecida por ter interpretado Lisbeth Salander na versão sueca da trilogia “Millennium”, entregam uma performance sóbria e crível, apesar do cenário extremamente absurdo em que se encontram. Sem recorrer a maneirismos ou verborragia, ambos atuam na mais perfeita harmonia e em total convergência com a proposta, transmitindo com uma simples troca de olhares todo um contexto que, se convertido em linhas de diálogo, se tornaria altamente expositivo e desnecessário, tendo em vista a fluidez da trama.

Combinando efeitos práticos com um bom uso do CGI, o visual de Ada impressiona pela forma realista com que a ovelhinha interage com os demais atores de carne e osso. Embora a princípio haja uma certa estranheza ao vê-la em cena, não demora muito para nos acostumarmos com a criaturinha, cujo olhar transmite toda a sua personalidade dócil, tornando uma tarefa quase desumana não simpatizar com ela.

Em essência, “Lamb” é uma experiência bastante agridoce recomendada para um tipo muito específico de paladar. Portanto, é compreensível que existam opiniões divergentes quanto ao seu gosto. Se, por um lado, o filme pode parecer leve e lento demais para quem quer apenas assistir a um terror convencional, por outro, é capaz de soar terrivelmente cruel e pessimista. Mas é justamente essa dualidade que o torna tão singular, atendendo às expectativas de quem busca algo fora do comum.

Alan Fernandes
@alanfdes

Compartilhe