Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 22 de maio de 2022

Demolidor (2015-2018): o enorme potencial de séries da Marvel

As obras da Marvel do final de 2021 trouxeram lembranças de uma das primeiras incursões do MCU em séries. Complexo, violento e pingando de respeito ao material original, "Demolidor" foi sinônimo de alta qualidade.

Em 2013, a Disney anunciou que a Marvel Television iria produzir quatro séries com personagens da Casa das Ideias, e uma minissérie que juntaria o novo quarteto de heróis apresentado (que acabou sendo a fraca “Os Defensores”). Além de Jessica Jones, Punho de Ferro, e Luke Cage, o Homem Sem Medo foi o que iniciou esse projeto em 2015, com a estreia da série que carregou seu nome, “Demolidor”.

Com a certeira escalação de Charlie Cox para o papel principal, a série trouxe Matt Murdock, advogado cego que começa a usar suas habilidades e outros sentidos aguçados para combater o crime e ajudar os moradores da Cozinha do Inferno, bairro onde reside em Nova York. Ele funda uma empresa com seu melhor amigo, Foggy Nelson (Elden Henson), e contratam a amiga Karen Page (Deborah Ann Woll). A figura criminosa principal é Wilson Fisk – Rei do Crime (Vincent D’Onofrio) —, mas isso não impediu a série de apresentar vários outros personagens de peso dos quadrinhos do herói. Elektra (Élodie Yung), Mercenário (Wilson Bethel), Ben Urich (Vondie Curtis-Hall), e até o Justiceiro (Jon Bernthal) dão as caras de forma narrativamente rica, adicionando seus ingredientes nas mudanças pelas quais Murdock passa.

A primeira temporada traz Fisk como antagonista. O acerto começa quando ele é apresentado com a mistura certa entre uma ameaça imponente e um homem com camadas e até emoções. A série demora alguns episódios para colocar o vilão em tela, mas constrói sua presença com menções e referências que alimentam o mito do perigo implacável que ele representa. Junte isso à atuação de D’Onofrio e aí está um dos maiores destaques de toda a obra. A forma com que ele pode explodir em crueldade repentina contrastada com a que ele demonstra certa vulnerabilidade na sua falta de tato/vontade de interagir com outras pessoas cria um indivíduo complexo e intrigante. Certamente haverão momentos onde sentir alguma simpatia por ele pode ser quase inevitável.

A segunda temporada trouxe Elektra e o Justiceiro, e junto com eles, o receio de que muitos personagens novos pudessem resultar numa obra rasa e enfadonha. Felizmente, não foi o caso. Ambos aparecem para se mesclarem a diferentes aspectos do protagonista. Elektra e Murdock tiveram uma relação antiga, e o Justiceiro trata o combate ao crime de maneira mais violenta, sem a menor hesitação em matar criminosos. Além disso, ambos têm seus próprios arcos, não são meros coadjuvantes cuja única função é temperar a jornada do protagonista.

O destaque fica por conta de Bernthal, que traz a mescla certa de raiva e trauma que impele suas atitudes e cria um ótimo e bem-vindo debate sobre as filosofias do Justiceiro e do Demolidor ao lutar contra criminosos. Há um episódio onde ambos estão em um telhado, e a discussão entre eles é tensa, enervante e leva o espectador a entender as motivações de cada um. Se era para colocar dois personagens famosos se enfrentando, essa sequência sozinha, sem precisar de um único soco, já dá um banho em “Batman vs Superman: A Origem da Justiça”.

A terceira temporada se passa após os acontecimentos de “Os Defensores” e aborda outro aspecto de Murdock: sua fé. Questionando-a e, assim, seu próprio papel como Demolidor, há episódios memoráveis onde ele dialoga com membros da igreja, tudo cheio de metáforas sobre como ele próprio precisa se reencontrar. Ainda há a adição do vilão Mercenário, que também recebeu um belo tratamento do roteiro, que constrói a psiquê de um psicopata de tal forma que o espectador se pega até genuinamente torcendo para que ele se acerte em alguns momentos. O que essa temporada faz com Fisk também merece elogios, recriando a aura de poder absoluto do vilão.

Assim, é fácil concluir a melhor coisa sobre esta série: seus personagens. Claro que há sequências de lutas embasbacantes e bem coreografadas (a do corredor na primeira temporada é inesquecível), mas é nos antagonistas bem construídos e em coadjuvantes bem utilizados que a obra cresce e se enriquece. Obviamente, isso pouco adiantaria se os personagens principais recebessem fracos tratamentos de roteiros, mas o trio Murdock, Nelson e Page é soberbamente escrito, com personalidades distintas e atores que entenderam bem seus conflitos e motivações. Há diálogos entre eles que empolgam tanto quanto uma boa luta.

Ann Woll traz uma Karen forte, mas não destemida. É uma mulher complexa, que consegue ser altamente corajosa em investigar situações perigosas e peitar injustiças, mas que não está imune a sentir medo, dor e tristeza com os – vários – acontecimentos que a envolvem. Ela especialmente brilha ao poder explorar camadas do passado de Page na última temporada. Henson atinge o nível perfeito entre humor, camaradagem, coragem e otimismo. Seu Foggy é alguém que todo mundo gostaria de ter como amigo e traz uma bem-vinda leveza ao tom sério e sisudo da série.

Mas seria difícil gostar de “Demolidor” se o próprio não fosse bem interpretado. E Charlie Cox, além de excelente, gosta desse papel. Murdock lida com o luto pela perda do pai; a criação solitária num orfanato; seu passado com Elektra e seu mentor Stick (Scott Glenn); sua fé; e seu constante dilema de até onde ele pode ir ao combater o crime. Ele flerta com oportunidades de matar criminosos, ele se indaga se seu uso de violência é excessivo… ou insuficiente, o que o leva a um forte sentimento de culpa, baseado na sua devoção católica. Cox entrega tudo com postura e leves empostações de voz, sem precisar apelar para gritos ou qualquer tipo de exagero.

A escolha da série em não torná-lo imbatível em lutas enriquece o personagem. Ao apanhar MUITO tentando fazer seu trabalho como o Demônio da Cozinha do Inferno, todas as suas características são realçadas, e leva o espectador a se perguntar com ele se sua tenacidade é inspiradora ou obsessiva. Ao longo das três temporadas, “Demolidor” se revela uma série encorpada com vários arcos, acontecimentos, coreografias e momentos marcantes. Claro que há defeitos, mas eles são pálidos mediante o brilho da quantidade de acertos. Seus personagens são complexos, falhos e cheios de dúvidas, tornando-se pessoas a quem é fácil se conectar; até os vilões são incrivelmente bem escritos, além de representarem ameaças reais ao herói. Após “Gavião Arqueiro” e “Homem-Aranha: Sem Volta para Casa”, fica a torcida para que Murdock e cia. enriqueçam ainda mais o Universo Cinematográfico da Marvel.

Bruno Passos
@passosnerds

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