Completamente deslumbrado em seu próprio parquinho, Jon Favreau não sabe o que quer fazer de "Star Wars" e desmerece um dos maiores personagens da franquia.
Quando somos crianças, não há nada mais legal do que ganhar brinquedos de presente; não tente dar roupa, o resultado será uma careta. Conforme crescemos, até podemos continuar gostando de brinquedos, claro, mas infelizmente precisamos ter a sabedoria para constatar quando precisamos comprar roupa por conta própria. A infância de Jon Favreau, principal força criativa do universo “Star Wars” atualmente, não deve ter tido tantos brinquedos assim, já que em “O Livro de Boba Fett“, o cineasta se perde no parquinho que ele próprio construiu.
A série do Disney Plus foi anunciada logo ao final da segunda temporada de “The Mandalorian“, em dezembro de 2020. À época, estávamos todos extasiados com o que faziam Favreau e seu parceiro Dave Filoni, colocando personagens clássicos para interagir com novos e contando histórias que se amparavam nas influências clássicas de “Star Wars”. Era fácil prever que “O Livro de Boba Fett” seria um sucesso, pois era como se ela já até tivesse começado em “The Mandalorian” com o retorno de Temuera Morrison como o caçador de recompensas e Ming-Na Wen como a mercenária Fennec Shand. Mas sucesso não é algo que acontece por inércia.
A intenção da trama é acompanhar a ascensão de Boba Fett ao posto de chefe do crime em Tatooine, e já começa continuando de onde ele parou em “The Mandalorian”. Após a morte de Jabba the Hutt em “Star Wars: O Retorno de Jedi”, a principal família criminosa do planeta ficou sem líder, com o Twi’Lek Bib Fortuna (Matthew Wood) assumindo sem inspirar confiança. Fett depõe o antigo mordomo deslumbrado com a brutalidade que lhe é peculiar, mas ele não é um senhor do crime. A única vida que ele conhece é a de caçador de recompensas, um mero peão nos jogos de poder de figurões que não estão muito preocupados com o resultado final. É preciso mesmo uma revolução em escala galáctica como a que ocorre na Trilogia Original da franquia para mudar isso. E Fett pretende aproveitar sua chance.
Os primeiros capítulos trazem à mesa alguns dos elementos mais interessantes da série, explorando a fundo a realidade de Tatooine e tornando o planeta um personagem em si. Suas diversas facetas são abordadas de formas bem distintas, cada uma trazendo referências sutis e enaltecendo o caldeirão de influências que é “Star Wars”. Diversos paralelos são traçados, com a relação entre Fett e os Tusken com “Lawrence da Arábia” (pensados com uma sutileza encantadora pela diretora Steph Green no capítulo As Tribos de Tatooine), ou como o protagonista tenta se estabelecer como chefe de uma família criminosa tal qual Vito Corleone em “O Poderoso Chefão – Parte 2“.
Das brigas no Mar de Dunas aos grandes centros criminosos como o Santuário de Madame Garsa Fwip (Jennifer Beals) em Mos Espa, é nesse momento que “O Livro de Boba Fett” brilha de fato. Quando quer, a série consegue sustentar o ecossistema narrativo de Tatooine e relacioná-lo ao passado do protagonista sem problemas. É quando temos as adições dos mods (um grupo de criminosos cyberpunks adolescentes) e o retorno de gente querida como Cobb Vanth (Timothy Olyphant) e Cad Bane (Corey Burton). Seria impossível contar qualquer história de Boba Fett sem falar disso tudo, e as coisas até que caminham bem, apesar de a série não ser lá uma “The Mandalorian“.
Mas quando o clímax começa a se aproximar, Favreau e o showrunner Robert Rodriguez simplesmente abandonam tudo e passam a exibir algo como “Star Wars: a Série” em vez de “O Livro de Boba Fett”, sem que haja qualquer necessidade disso para a evolução da trama principal. Subenredos que não têm nenhuma ligação com que vimos antes aparecem e ofuscam tudo, chegando ao ponto de tornar o próprio desfecho da série em si algo trivial e desimportante. É claro que todo fã quer rever Luke Skywalker (Mark Hamill) e Ahsoka Tano (Rosario Dawson), ou sentir o quentinho de ver o Mandaloriano (Pedro Pascal) perambular pela galáxia com seu enjeitado Grogu. Só que há hora e lugar para lançar mão de recursos pesados como esses.
A falta de discernimento dos produtores é latente ao colocar em segundo plano o próprio protagonista, aquele que dá nome à obra, e, por mais legal que seja ver tudo que aparece na segunda metade da temporada, dá pena constatar que “Star Wars”, pelo menos até aqui, não tem a menor noção de como expandir sua galáxia. É impossível se conectar com uma história que não se leva a sério, e Favreau faz questão de deixar claro que a de Boba Fett não é interessante o suficiente para merecer todos os capítulos de sua própria série. Fett é um dos personagens mais emblemáticos de toda a franquia, dono de uma legião de fãs e até cosplayers dedicados, e deveria ser capaz de segurar a trama por conta própria. Mais que isso, até: ele merecia essa oportunidade após passar décadas preso dentro do Sarlacc tal qual o Gato de Schrödinger.
Favreau ainda irá comandar boa parte do universo “Star Wars” no streaming junto a Dave Filoni, como o futuro de “The Mandalorian“, a série “Ahsoka” e a ainda incerta “Rangers of the New Republic“. Seu toque é o que ajudou a tirar a franquia da turbulência da Terceira Trilogia nos cinemas e colocá-la de volta nas graças do público, e é importante enaltecer isso. Mas falta uma visão mais ampla a ele e Filoni enquanto construtores de mundo. Criar uma narrativa interligada ao longo de várias produções não é um pecado — todas as grandes produtoras hoje buscam uma franquia com universo compartilhado para chamar de sua. Mas, retomando o exemplo da Trilogia Sequel, ela também começou de forma empolgante com “O Despertar da Força“. Será preciso colocar a casa em ordem para evitar que o chamado “Filoniverso” (por ele ter começado várias dessas histórias lá atrás com a animação “The Clone Wars“) não culmine em outro “A Ascensão Skywalker“.