Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 09 de fevereiro de 2022

A Lenda do Cavaleiro Verde (Prime Video, 2021): quando o belo e o desconfortante se cruzam

Ditado por um ritmo contemplativo, o filme de David Lowery apresenta uma releitura surreal, esquisita e visualmente impactante da (des)construção de Sir Gawain.

Depois de uma longa espera, “A Lenda do Cavaleiro Verde” finalmente chegou. O filme, que desde os primeiros teasers anunciava uma fábula sombria e enigmática, despertava curiosidade e chamava a atenção pelos nomes envolvidos no projeto. Histórias como a do Cavaleiro Verde, que se passam na Idade Média e apresentam a jornada de um herói, tendem a ser um prato cheio quando ganham as telas. Da missão, passando pelos obstáculos, até chegar ao destino final, tudo soa atraente e instigante para o espectador. E aqui não é diferente. A narrativa faz uso de clichês do gênero, mas não se entrega à brutalidade daqueles tempos. O longa se ergue a partir do sobrenatural, do visual acachapante, dos poucos e profundos diálogos e de uma ação comedida, resultando numa epopeia às vezes interessante, às vezes extenuante.

Para este épico, David Lowery, dos excelentes “Meu Amigo, o Dragão” e “Sombras da Vida“, adapta o romance medieval Sir Gawain and the Green Knight, que ficou conhecido no século XIX, mas que teve sua edição mais celebrada no século seguinte, graças a J. R. R. Tolkien. Durante a comemoração do ano novo no castelo do Rei Artur (Sean Harris), os cavaleiros da távola redonda recebem a inesperada visita do Cavaleiro Verde (Ralph Ineson), uma figura imponente, meio humana, meio árvore, que propõe um desafio: pede que alguém lhe dê um golpe, contanto que essa pessoa permita a devolução do mesmo golpe um ano depois. Disposto a provar sua nobreza, Gawain (Dev Patel) toma a frente, golpeia o Cavaleiro, que não morre e agora o esperará na Capela Verde quando marcar um ano depois.

A lenda, que já tem em sua essência a fantasia, viaja pelo surreal em meio às ideias da mente efervescente de Lowery. Como roteirista, ele mostra habilidade para transportar para a tela uma obra de plot simples, mas que requer engenhosidade para ir além. Dono de um tom bastante específico, Lowery confere aqui uma energia semelhante à que usou para desenvolver “Sombras da Vida“, uma de suas pérolas existenciais. A trajetória do protagonista é marcada por obstáculos que fogem do convencional. Não espere combates físicos brutais, bruxas ou maldições. O verdadeiro desafio do nobre aspirante a cavaleiro está nas descobertas sobre sua própria personalidade que surgem a partir de indagações e batalhas incomuns que testam a sua sanidade, demandando uma posição entre o que é ou não é real ao longo do caminho. 

Mas para ilustrar os conflitos psicológicos que permeiam a aventura de Gawain, a montagem de Lowery assume alguns riscos, que podem tornar a experiência do público um tanto desgastante. São 130 minutos em que a fantasia, elemento fundamental da narrativa, é predominante e, com ela, uma abordagem excessivamente contemplativa, que acaba por prejudicar na fluidez do desenvolvimento. Há pouca ação direta. A jornada de autodescobrimento apresenta fantasmas, visões, gigantes inexpressivos e animais falantes que oferecem pouca resistência aos avanços do protagonista, o que leva ao diagnóstico da imprecisão da montagem, que sofre para equilibrar a perspectiva mística com as poucas que são objetivas. E uma história medieval pede o mínimo de ação para chamar a atenção.

Embora, aqui, o registro mais observador não seja sempre uma decisão ruim (há, por exemplo, sequências bonitas e intrigantes que atraem pelo desconforto e originalidade), a ausência de diálogos é outra escolha que atrapalha o desenvolvimento. É admirável a autonomia que Lowery oferece ao público para tirar suas próprias conclusões, bem como a experiência de uma narrativa sem caminhos fáceis. Mas largar a mão completamente de explicar o mínimo pode acarretar no desinteresse de quem assiste, ainda que seja inevitável não se deixar levar pelo magnetismo da interpretação de Dev Patel, mais uma vez excelente. O ator expressa toda a confusão interna, insegurança, coragem e persistência de Sir Gawain sem depender de diálogos, e quase que num voo solo consegue segurar o filme até o fim.

Em tempos inflados por histórias pasteurizadas, a presença de um filme como “A Lenda do Cavaleiro Verde” é um sopro de esperança. David Lowery arrisca. Erra e acerta na mesma proporção. Porém, entrega um produto original, com uma visão única e que, se visto por muita gente, promete alimentar discussões e provocar várias sensações.

Renato Caliman
@renato_caliman

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